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Abril...

Jantávamos. A conversa fluía em função dos acasos do dia. Do deixas-
-me ir ao cinema no Domingo
pretexto para uma negociação adiada, acabamos por ir parar a uma pergunta há já algum tempo artilhada:
- Queres escrever um texto sobre o 25 de Abril ?
O não quase imediato que obtivemos como resposta era mais ou menos esperado. Por isso fomos explicando-lhe, à vez, que estávamos interessados em saber como é que os filhos de pessoas para as quais o 25 de Abril constituiu, e constitui, uma referência maior das suas vidas, olhavam, hoje, para essa data memorável.
- Não estou interessada em fazer isso. O 25 de Abril foi muito importante mas não tenho nada a dizer.
E sem dar tempo a um previsível contra-interrogatório rematou:
- ... se ainda fosse sobre a revolução cubana!...
Não valia a pena insistir, apesar da irritação que, mais tarde reconheceríamos, o episódio nos suscitara.
Como é que se consegue explicar, hoje, a uma adolescente desempoeirada, as razões da perplexidade de uma outra garota com treze anos, em 1974, quando uma amiga mais velha lhe telefonou sobressaltada a inquirir se o pai dela não se importaria de emprestar os discos do Zeca Afonso para serem tocados na rádio local ?
Será possível explicar-lhe como essa garota, já uma jovem recém-casada, viveu o seu retorno a África, a uma Guiné onde aprendeu que para se ser professora é necessário conseguir-se tecer cumplicidades com os alunos, com os outros professores, seus colegas, com uma comunidade e um projecto que não é explicável, apenas, em função da sua dimensão pedagógica ?
Como é que a nossa filha poderá compreender a constelação de sentimentos, feita de alegria, de espanto e de desconfiança, sentida por um rapaz de dezassete anos quando junto à Igreja da Lapa começou a ouvir um abaixo a guerra colonial, gritado em uníssono por milhares de manifestantes junto ao Quartel-General, sem que a polícia de choque aparecesse para os reprimir selvaticamente?
Que palavras é que existem para lhe explicar o que esse rapaz, hoje seu pai, aprendeu nas noites de Albernoa, à porta da tasca da aldeia, gravando modas alentejanas e ouvindo as histórias de uma opressão impensável ?
E as memórias da Escola do Magistério Primário, como narrá-las ? Como conseguir expressar por palavras o que vivemos, o que aprendemos, o que sentimos ? Como dizer-lhe que a escola podia ser um espaço, mais do que consentido, com sentidos ? Um espaço de diálogos, e também de confrontos. Um espaço, que apesar de imperfeito, nos permitiu encontrar gente tão importante e decisiva como foram para nós, o Bento, o Pedro Mesquita, a Fernanda Figueira, o Chico Beja, o Felizes, ou a Rosalina?
Acabamos assim, e inevitavelmente, por nos perdermos no labirinto das nossas memórias, voltando a escutar os murmúrios de um tempo que nos legou, também e como herança, a inconformidade que as palavras e os gestos da nossa filha exprimiam quando, sem hipocrisias, reconhecia que o Che era um personagem bem mais significativo para ela do que Otelo, o capitão.
Pelo menos não confunde o 25 de Abril com o 5 de Outubro, rematou ironicamente um de nós, talvez em jeito de consolação.
Cresceu, afinal limitou-se a crescer. Cresceu num país onde já ninguém se sente obrigado a escrever, e a cantar, que a vida sem viver é mais segura.
Cresceu num país onde, apesar de tudo, já não somos pastoreados como um rebanho perseguido pelo medo, como cantava José Mário Branco através das palavras de O'Neil. Um país onde ela pôde aprender que possui uma voz e um corpo, enquanto nós, na sua idade, nos limitávamos a adivinhar que era possível e desejável ter essa voz e esse corpo. Um país onde a felicidade é um desejo tão humano quanto possível, enquanto que no Portugal salazarista deveria ser uma espécie de sonho pecaminoso e interdito.
A adolescência dela não é mais fácil do que foi a nossa, mas poderá ser mais promissora. Sobretudo se compreendermos que vinte e cinco depois do 25 de Abril continuamos a depender de nós, da nossa capacidade de organização e de reflexão, do nosso empenho e dos nossos actos, para concretizar o que então soubemos sonhar: viver num país onde seja possível viver e crescer de uma forma digna e decente.
Que se erga o sol do Verão, somos nós os seus cantores...

Ariana Cosme
Instituto Irene Lisboa/Porto
Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação/Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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