Página  >  Edições  >  N.º 78  >  Ser inter/multicultural

Ser inter/multicultural

1. Continuar

Nunca fazemos verdadeiramente o que projectamos. Ou melhor, o projecto, o projecto de vida, não é como o do engenheiro ou do arquitecto que logo acabado é mandado executar em conformidade. Na vida, o futuro é incerto e constrói-se a par e passo na vivência do presente. O futuro do ser é formulável mas não determinável. Vem isto a propósito de ter anunciado no último número a minha "retirada". Pediram-me para continuar. Assim, não é este o útimo artigo da minha série de sete. Assegurarei esta coluna até Julho.

2. Ser igual / Ser diferente

A questão das diferenças, do eu e do outro, do nós e dos outros, é problema social apenas porque assim tem sido construído pelas mentes individuais da cultura dominante. Mais que a diversidade, o verdadeiro problema científico coloca-se antes com a unidade, com a morte da diversidade. A todos os níveis.
A dialéctica identidade/alteridade é fecunda na produção de juízos e atitudes etnocêntricas. Os valores e modos de pensar que não são nossos, não nos parecem naturais. O contacto entre identidades levou em todas as épocas a que os povos classificassem a diferença humana ora como não humana, ora como de "selvajarie" ou de "barbárie". Lévi-Strauss coloca bem a questão em Raça e História (1980) ao dizer que certas tribos primitivas se chamam de homens o que não admitem para as outras. Para os sujeitos pensantes, a humanidade acaba nas fronteiras da tribo.
O etnocentrismo acaba por ser um elemento básico do processo de identificação de uma cultura. Como refere Ladmiral (1989 pp. 137-138), "O etnocentrismo é inerente a todo o grupo sócio-cultural, étnico ou nacional. É correlativo do mecanismo da distinção que separa o teu do meu, o próximo dos estrangeiros, as pessoas daqui das pessoas de fora [...]. Assim, o etnocentrismo é ao mesmo tempo um traço cultural universalmente expandido e um fenómeno psicológico de natureza projectiva e discriminativa que faz com que toda a percepção se faça através duma grelha de leitura elaborada inconscientemente a partir do que nos é familiar e dos nossos próprios valores".
A propósito do estabelecimento de comunicação intercultural entre sujeitos e culturas diferentes, refere-nos Todorov (citado em Abdallah-Pretceille, 1990: 85) que "no melhor dos casos, os autores espanhóis dizem bem dos índios, mas salvo excepção, nunca lhes falavam. Ora é falando ao outro [...] que eu lhe reconheço uma qualidade de sujeito comparável àquele que sou eu mesmo"

Podemos assim considerar pelo menos três lógicas subjacentes às atitudes e comportamentos perante a diversidade cultural.
Uma, que vê o estranho, o outro, qualquer que ele seja, diferente mas desigual. É um diferente tolerado mas também por vezes contestado interiormente. É um diferente que até às vezes é ajudado. No entanto, é tratado, considerado, representado, como desigual. As relações sociais entre a identidade e a alteridade, entre o eu e o outro, existem se o diferente se submeter ao nós. Se quisermos encontrar um modelo para tipificar este tipo de práticas e de atitudes, podemos pensar nos negros que ao longo da história trabalharam em tarefas penosas que aprenderam a realizar como um bem para os seus senhores, os brancos. Em alguns períodos da história portuguesa contemporânea, encontraremos relações sociais por vezes estruturalmente semelhantes nos caso das relações patrão/empregado e marido/mulher. Há aqui multiculturalidade, coexistência de diferenças culturais mas há nítida desigualdade nas interacções. A comunicação estabelecida e as reçãoes de poder são fundamentalmente unívocas.
Em segundo lugar, podemos considerar uma outra lógica ainda mais xenófoba, quando se pensa nos casos em que o diferente não só é estigmatizado ao ser tratado como desigual, mas também por considerado anómalo e horroroso. Algumas práticas sociais têm contribuído para tirar qualquer espécie de legitimidade existencial a indivíduos carenciados de variadíssimas formas, com dificuldades psicomotoras, etc. bem como a determinadas culturas; tudo isto para assegurar a monoculturalidade duma sociedade identificada com a cultura dominante e idealizada como una e monolítica. É o exemplo clássico do nazismo.
A terceira lógica, a que designo de interculturalidade, de práticas interculturais, é aquela que visiono como a única capaz de permitir a diversidade na unidade. Para transformar tal utopia em "topos", em factos realizados, é preciso preparar todos os indivíduos para responder aos desafios da sociedade multicultural em que vivemos. É preciso abertura e coesão. Diversidade na unidade. Metaforicamente, uma salada de frutas que não anula os diferentes sabores presentes no todo.

Multicultural e Intercultural

A educação multicultural prende-se antes de mais com questões de justiça social, com preocupações políticas de procurar a igualdade e combater a discriminação que tem atingido determinadas camadas e grupos sociais. Em termos de percurso teórico e prático, ela foi pensada primeiro para as minorias raciais. Aplica-se hoje a outras diferenças culturais que vão das questões linguísticas às classes sociais, passando pelo género e outras diversidades culturais que não só étnicas. É por essência um conceito muito mais caro às Escolas Americanas que às Europeias. Não se pode dizer que ela exclui a interacção mas põe quanto a mim menos a tónica na abordagem da construção identitária pessoal e cultural concebida de maneira heterogénea. Por isso reservo o termo multicultural para a simples pluralidade de culturas em jogo, quer dizer, para o facto de haver coexistência de culturas e subculturas que se traduzem em diferentes efeitos.
O conceito de intercultural, no sentido em que o utilizo, implica as noções de reciprocidade e troca na aprendizagem, na comunicação e nas relações humanas. É evidente que o intercultural não está liberto dos discursos ideológicos, inspirados fundamentalmente numa ética humanista, que deseja um ideal de diálogo, de respeito pelas diferenças, de compreensão mútua, etc. Por isso há que evitar, na medida do possível, as atitudes normativas e situarmo-nos mais nos processos de encontro intercultural, quer dizer, em factos.
Quando utilizo o conceito de intercultural, faço-o justamente a partir do momento em que há uma preocupação de comunicação entre os indivíduos portadores de diferentes culturas. Para isso há que pensar numa educação para o plural, o que implica reestruturar o sistema de atitudes que em cada um de nós é responsável pelas representações que temos dos outros - quer dizer, metamorfosear a identidade pessoal.
É esta a lógica que me parece urgente incrementar nos sistemas educativos modernos, como consequência da crescente multiculturalidade que não pode excluir-se mutuamente, sob pena de que se transformem direitos de se ser diferente, em enclaves culturais. "No terreno estritamente antropológico, assiste-se, designadamente, ao reconhecimento do tão propalado direito à diferença, isto é, do direito que têm as pessoas como pessoas de seguirem e de se construirem - sobre as suas afinidades específicas sócio-bio-psicológicas - caminhos divergentes de acordo com os ideais que perfilham" (Carvalho, 1988: 151). Por isso é preciso uma formação de professores interculturais. Professores que possam contribuir para a construção também de crianças interculturais, que podendo ser diferentes, possam no entanto comunicar-se e respeitar-se. Professores que sejam capazes de pôr em prática pedagogias da divergência e não apenas de convergência.
É que, se o eu e o nós são construções interculturais, pois retiram dos sistemas com que interagem partes para construir o seu todo cultural, como vimos já anteriormente, não significa contudo que as atitudes dos protagonistas sejam igualmente interculturais. Por vezes são francamente monoculturais. Ou multiculturais, que transformam a diferença em desigualdade através de processos explícitos e ocultos da exclusão.

Ricardo Vieira

Escola Superior de Educação de Leiria

 

Bibliografia referenciada

ABDALLAH-PRETCEILLE, M. (1990). Vers une Pedagogie Interculturelle, Paris: INRP.

CARVALHO, Adalberto Dias de (1988). Epistemologia das Ciências da Educação, Porto: Edições Afrontamento.

LADMIRAL, Jean-René, et LIPIANSKY, Edmond Marc (1989). La Communication Interculturelle, Paris: Armind Colin.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo