Esquina da Avenida Fernão Magalhães com a rua de Santa Justa, no Porto. São 0,30 da manhã. Enrolada num cobertor, uma mulher dorme sobre o cimento do passeio, abrigada apenas pelo muro que ladeia o quarteirão. Quando ouve a porta de uma carrinha abrir-se, desperta com movimentos lentos da sua letargia. O som já lhe é familiar. É a equipa da Legião da Boa Vontade (LBV) que chega com sopa, leite e pão. Provavelmente a única refeição quente que tomou ao longo do dia. O cabelo está molhado. A face, inchada, adquiriu a tez arroxeada característica das queimaduras provocadas pelo frio. Quase sem proferir palavra, a dona Ana aceita de bom grado a sopa que lhe é oferecida e come-a com a mesma paciência que utilizou para se levantar. Quando acaba, pede um cobertor e enrola-se uma vez mais de encontro ao cimento frio. De nada tem valido a insistência da equipa da LBV em convencê-la a procurar um abrigo mais resguardado ou a dirigir-se aos albergues nocturnos. Mesmo a família, que a procura muitas vezes, não consegue demovê-la do destino que escolheu. É ali que a dona Ana se "sente bem", se é que esta expressão possa ter algum sentido. Ali perto, num parque de estacionamento próximo da zona do Marquês, concentram-se mais seis sem abrigo, divididos em dois grupos. Com uma longa barba branca e de carácter amistoso, recebendo quem o visita com um aperto de mão, J. faz lembrar um "avôzinho" retirado de uma história infantil. "Boa noite", cumprimenta com ar bem disposto os voluntários da LBV que todas as sextas e sábados lhe aquecem o estômago com uma sopa de legumes. A característica que talvez mais impressione em J. é o facto de não se sentir qualquer ponta de amargura no seu discurso, ao contrário do que muitas vezes perpassou ao longo dessa noite. Ao seu lado está F., companheira de muitas noites, a quem o frio parece não incomodar apesar da pouca roupa que lhe cobre o corpo. Mulher forte e de voz decidida, é ela quem tem insistido junto de J. para que este requira o bilhete de identidade para aceder ao rendimento mínimo garantido. Semana após semana, a sua insistência e o apoio da equipa tem dado resultados. É que apesar de não ter uma morada fixa, J. trazia anotada, naquela noite, a direcção de um familiar para onde poderá ser enviado o cheque da segurança social. Agora só falta aparar a barba para a fotografia do bilhete de identidade. Mas não parece fácil. "Já fui à AMI (Assistência Médica Internacional), mas disseram-me que ali não faziam tosquias", queixa-se o homem. "É uma estúpida que lá está. Não gosto dela nem com molho de tomate", retorque F.. "É por isso que deixei de ir lá tomar banho e lavar a roupa". Mais à frente, um dos sem abrigo do outro grupo queixa-se que a sopa "não sabe a nada" e chama "hipócritas" aos elementos da LBV. "Isto é alguma coisa? Onde é que está o feijão? E a carne?". "Tenho muita pena mas é o que temos para oferecer", responde-lhe a assistente social que viaja com o grupo. Esta reacção gera violência, apenas contida pela intervenção do motorista. Depois dos ânimos serenados, é altura de partir em direcção à baixa. É agora 1,10 da manhã. Na rua do Paraíso um idoso dormita na entrada de um prédio. É o senhor Daniel, que pouco depois da chegada dos visitantes começa a vociferar: "tenho dinheiro para receber da caixa de aposentação e não sou obrigado a aturar isto". O resto do discurso é imperceptível, tal é a ira com que profere as palavras. Depois de comer a sopa e pedir um cobertor, Daniel avisa a equipa que não os quer voltar a ver por ali. É que dessa forma, assegura, a caixa nunca lhe pagará um tostão. "Está certo. Até amanhã senhor D.". A perturbação da saúde mental do senhor Daniel é por demais evidente. Ainda na semana anterior, garante um dos voluntários, "éramos nós que lhe devíamos dinheiro". Um nevoeiro espesso começa a abater-se sobre a cidade e o frio é cada vez mais intenso. A próxima paragem é na Trindade, uma conhecida zona de prostituição na baixa do Porto. É por ali que dormem o Carlos e a dona Odete. Apesar da diferença de idades existente entre os dois - o primeiro na casa dos trinta, a segunda uma octogenária -, a relação que estabeleceram ao longo dos últimos anos dava quase uma história de amor. Carlos, que à noite se transforma em Carla e se prostitui nas imediações, decidiu "adoptar" a velha senhora de ar frágil e fazer dela a sua protegida. Há oito anos, quando a conheceu na rua, a dona Odete esta estava em risco de vida. "Estava podre. Tinha um ovário em decomposição e um quisto na bexiga", explica Carlos. Não fosse a sua persistência junto dos médicos de um dos hospitais da cidade para a colocar à frente de uma longa lista de espera e a dona Odete teria concerteza morrido. "Se não fosses tu eu já não estava aqui, não é Carlos?", diz a mulher com complacência, fitando nos olhos o seu anjo da guarda. É com evidente dificuldade que se levanta e pousa o prato de plástico da sopa sobre um caixote do lixo colocado ali ao lado. Em redor da carrinha, outros quatro sem abrigo, aparentando não mais de 30 anos, pedem a sua dose de sopa. A imagem mais forte da noite, no entanto, estava ainda guardada para mais tarde. Perto do centro da cidade, na rua de Santa Catarina, uma autêntica legião de deserdados do mundo aguardava impacientemente a chegada da carrinha da LBV. Eram mais de vinte pessoas, por entre idosos e jovens, que se acotovelavam para receber a sua dose de sopa, pão e leite quente. Sentado num dos bancos da rua está um casal novo - ele com 34, ela com 36 anos, comendo apressadamente. Foi um "amor de cartas" que uniu os dois, como refere C.S., contando em poucas palavras como conheceu a mulher através de correspondência trocada enquanto permaneceu na prisão. Têm duas filhas, uma de três anos, outra de cinco, e estão ali também por elas. Afinal, duas pequenas garrafas de leite e quatro pães sempre ajudam a matar a fome das mais pequenas. Mas a situação em que se encontra a família pode alterar-se em breve. Essa é, pelo menos, a esperança de C.S.. "Estou a tentar conseguir arranjar um emprego na minha arte, que é pintor. Mais ao lado, o Hugo, com vinte anos, lamenta-se da "puta da droga" que o pôs na rua a pedir. Como qualquer toxicodependente, repete constantemente que o seu principal objectivo é livrar-se da heroína e arranjar um emprego. Entretanto, vai dormindo numa casa abandonada situada ali perto, que compartilha com mais alguns companheiros de infortúnio. Uma luz ao fundo do túnel Muitos dos sem abrigo da cidade vão-se valendo dos Albergues Nocturnos do Porto, último refúgio possível para quem não consegue habituar-se aos rigores de uma caixa de cartão ou de um patamar de entrada de um prédio anónimo. Um sítio onde é possível tomar um banho quente, comer uma refeição, trocar de roupa e dormir num colchão. Os homens são ali maioritários, ocupando cerca de oitenta por cento das vagas deste centro de acolhimento, havendo apenas dez camas reservadas a mulheres. Apesar da média de idades ser de 43 anos, a percentagem de jovens dos 21 aos 30 anos ainda consegue atingir os 17%, segundo números de Dezembro de 98. A faixa etária predominante é a dos 31-40 anos, com 28%. Daí para cima, embora ligeiramente, a média decresce: 22% dos 41 aos 50 e dos 51 aos 60, e 17% dos 61 aos 70. Os mais idosos, dos 71 aos 80 e mais velhos, constituem apenas 3% do total. Um universo onde a baixa condição social não é um factor necessariamente preponderante. Tal como acontece com o exemplo da dona Ana, cuja família, segundo nos assegurou a equipa da BLV, para além de a acompanhar, possui um desafogo financeiro considerável - não se tratando portanto de um caso de pobreza -, chegam ali pessoas que, em princípio, não necessitariam de apoio exterior. "É mais fácil chegar-se a uma situação destas do que à partida se possa pensar", afirma Antonieta Brito, socióloga e técnica de inserção da equipa multidisciplinar da Associação dos Albergues Nocturnos do Porto - uma instituição não governamental sem fins lucrativos - , na qual se incluem ainda duas assistentes sociais, uma psicóloga e uma médica. Como foi o caso de alguém, na posse plena das suas faculdades, que ali esteve perto de um mês até refazer a sua vida, ou de um outro, licenciado e proveniente de uma família da classe média, recém chegado. Isto, explica, porque independentemente das características pessoais os percursos acabam por ser quase invariavelmente idênticos, ligados na sua grande maioria a problemas familiares - nomeadamente o divórcio, que atinge sobretudo a faixa dos 31-40 anos -, aos quais costumam estar associados o consumo excessivo ou a dependência de drogas e álcool. Em casos extremos - como aqueles com que lida - a capacidade de trabalho diminiu e emerge na personalidade o comportamento agressivo. Um meio caminho para o desemprego. Além disso, garante a socióloga, as tentativas de reaproximação da família revelam-se habitualmente infrutíferas, contribuindo para um crescente sentimento de frustração e de alheamento da realidade. É assim que, após anos de vida na rua, muitos sem abrigo "começam a viver um outro mundo e uma outra percepção da realidade". A avaliar por algumas das situações já descritas tal não será difícil. "Imagina a aflição de uma pessoa que está sempre em sobressalto, sujeita a ser roubada ou maltratada a qualquer momento? É quase impossível dormir descansado numa situação destas". É talvez por essa razão que os casos clínicos de psicose e de esquizofrenia sejam frequentes. J.S. tem 38 anos mas aparenta seguramente mais dez. Conta que nasceu na Régua e veio para o Porto quando era ainda muito novo. Ao longo da sua vida nunca trabalhou nem estudou "por causa da cabeça e dos nervos", diz no seu jeito tímido. Não se lembra exactamente há quanto tempo se encontra hospedado nos albergues. "Só sei que já estou cá há muito tempo, desde que o meu pai morreu". Um acontecimento sem cronologia definida, mas incrustrado definitivamente na memória sentimental de J.S.: "parece que ainda o sinto a chamar-me". O dia é habitualmente passado no jardim ou à conversa com os amigos e conhecidos. Ao princípio da noite, quando regressa, entretém-se a ver televisão até à hora do jantar. Às dez horas é certo estar já deitado. J.S. diz que não se importa nada de estar por ali porque, afinal, sempre tem a companhia do irmão e "toda a gente se dá bem". Mas o futuro também está presente nas suas preocupações. "Enquanto aqui estiver não posso fazer nada, mas tenho vontade de arranjar um trabalho como ajudante de pasteleiro ou como trolha. Daqui por quanto tempo não sei. Só quando elas (assistentes sociais) resolverem". Acima de tudo, diz serenamente, "quero é paz e sossego na vida". Em contextos como estes, quais as possíveis motivações de vida para estes homens e mulheres? "Esse é o nosso principal trabalho: elever-lhes a auto estima e encorajá-los a retomar a sua vida", diz Antonieta Brito. Um processo naturalmente moroso, que à chegada se inicia pela prestação dos cuidados mínimos de saúde e por um posterior acompanhamento permanente (a maioria dos sem abrigo que ali chega padece normalmente de alguma enfermidade, principalmente doenças de pele) e pela garantia de condições mínimas de vida: comida, roupa e cama. Só depois se pode pensar em avançar para aspectos mais burocráticos, como a recuperação legal da identidade - muitos não possuem qualquer documento ou sabem sequer identificar-se - e a candidatura ao rendimento mínimo garantido, única forma de prevenir o retorno à mendicidade. A colocação num emprego é o último passo. Através do apoio da segurança social e dos protocolos existentes com os centros de emprego, a sua equipa já conseguiu alguns sucessos. Segundo números fornecidos pela própria instituição, e num universo de 200 pessoas atendidas, cerca de trinta conseguiram ser inseridas no mercado de trabalho. Tudo o que é preciso, afirma, é que "cada um procure as suas próprias motivações e se predisponha a aceitar algumas regras". Caracterizando a situação dos sem abrigo de um modo mais generalizado, Antonieta Brito não hesita em afirmar que mais de metade dos casos que recebe está ligado ao consumo de drogas duras e que sem uma rectaguarda familiar forte o mais provável é manterem-se na rua. "Infelizmente, os toxicodependentes não costumam saber gerir o dinheiro que vão conseguindo ganhar aqui e ali. Qualquer deles prefere gastar mais mil escudos em droga do que pagar um quarto de uma pensão. Alguns estão tão arrasados da vida de rua que só pedem para descansar um dia ou dois. Outros ainda aceitam estar aqui um mês ou dois, mas acabam por se ir embora" Tal como o caso de uma rapariga de 22 anos - preferiu manter o completo anonimato - que abandonou a casa do pai há mais de um ano. Segundo a própria, porque ele não a deixava sair à noite até às horas que ela queria. Talvez a história seja mesmo esta, não importa. A vida familiar não foi propriamente um exemplo de virtudes. A mãe abandonou-a a ela e ao irmão quando tinham três anos. Após ter andado de casa em casa - "chateei-me com a minha cunhada e depois com o meu irmão" - os problemas começaram. Ao longo deste tempo andou com um grupo de amigos pelas ruas do Porto, consumindo "branca" e "castanha" (cocaína e heroína) e dormindo onde calhava. A certa altura passou a dormir numa casa abandonada, mas a polícia foi até lá e desocupou o edifício. O estômago, assegura, habituou-se a pouca fartura. Tanto, que por vezes "apetece-me comer e nem consigo". Um ataque de epilepsia levou-a ao hospital, de onde a assistência social a enviou para os albergues nocturnos. Agora não sabe exactamente o que fazer. "A minha cabeça não dá para mais, tenho de ter ajuda para ter a minha vida organizada. Nem sequer tenho roupa. Eu queria ter uma vida normal, mas os medicamentos não fazem efeito nenhum". Apesar do esforço mantido pela sua equipa, Antonieta Brito acredita que muitos sem abrigo dificilmente poderão ser recuperados para a vida em sociedade. "A maior parte deles já não vive a nossa realidade e recusa-se a aceitar as regras vigentes". É o exemplo de um idoso que, depois de encontrado, foi encaminhado para uma família de acolhimento até ser recebido num lar de terceira idade. "Quando aqui chegou tivemos praticamente de ensiná-lo a urinar na casa de banho e a tomar banho. Acabamos por saber que ele tinha cinco filhos, mas ele não se lembrava de absolutamente nada. Foram anos e anos de medo e de uma vida dura". Ricardo Jorge Costa Nota: Um agradecimento à equipa da Legião da Boa Vontade - Altino Soares, Orlanda, Augusto Portela, Athos e Ruben Jesus - que, por uma noite, decidiu aceitar um "membro honorário" na sua incursão nocturna por este Porto desconhecido.
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