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Estórias Sobre Rotinas - Algumas (des) Vantagens

Escrevi no último número sobre a identidade e a terceira dimensão do ser. Finalizei, dizendo que no próximo mês falaria de interculturalidade e da mudança para um paradigma educacional e para uma vida onde seja possível a diversidade na igualdade. Não saiu. Não deu. A pena fugiu para a rotina e para mais uma etnografia do meu quotidiano. Às vezes também é preciso sair do programado. E fugir. Voar. Criar. Não será isso escrever? A promessa anterior fica agora para o mês de Março, de resto o último (e já sétimo) deste meu contacto convosco através da Página da Educação.

Rotinas todos as temos

Ser rotineiro é entendido por vezes como algo de pouco criativo, de reprodução e pouca produção. Mas a nossa tranquilidade passa muito por um conhecimento prévio, ainda que pouco profundo, das tarefas que temos para realizar. Ter rotinas não é pecado. Possivelmente são inevitáveis, do ponto de vista de obedecer às regras dos sistemas onde funcionamos. Mas tal não implica também necessariamente a ausência completa da criação no acto do fazer. Rotinas todos temos, tenhamos ou não consciência delas. A auto-reflexão e a comparação com outros modos de fazer podem pô-las ao nível do consciente.

Diminuir a angústia.

Volto de novo ao meu mecânico para avançar de forma comparativa a tratar este mês as rotinas que temos no dia a dia. Não é que passe os dias na oficina. Mas a verdade é que quem tem no automóvel uma ferramenta indispensável ao trabalho quotidiano, por ela tem que passar regularmente, quanto mais não seja para dar resposta às sugestões dos livros de revisão. Ter automóvel, implica ter tais práticas cíclicas. Rotinas. Desta vez tratava- -se de mudar as velas, o óleo, o filtro e uma coisa menos habitual: a correia de distribuição. Estava preocupado porque o prazo fora atingido. O Pedro estava cheio de afazeres. Aparentemente não podia atender o meu caso naquele dia. E eu não iria dispor do tempo necessário para o efeito, tão breve. Fiquei angustiado e com medo das consequências que dali poderiam advir. Fundamentalmente pela tal correia de distribuição e pelo que dela tinha ouvido falar. O Pedro logo percebeu e tratou de me tranquilizar, ao mesmo tempo que reorganizava assim a sua agenda, e colocava a minha viatura em lista de espera lá mais para a frente. Sem sequer olhar para o carro logo me disse:
- Ó senhor professor, isso ainda pode fazer mais 10 ou 20 mil Km à vontade. Eles dão sempre uma margem de manobra. Já sei como é. Dou-lhe a minha garantia.
Garantia nenhuma. Conversa, pensei eu. Então eu que tinha ouvido tantas estórias de se ficar de repente imobilizado na estrada, não queria que isso me sucedesse a mim. E retorqui:
- Mas isto é assim tão complicado e demorado que não se possa ainda fazer hoje?
- Complicado? Isso é coisa que não me assusta. Pode demorar mais um ou dois minutos mas não há aí nada de surpreeendente. Não é preciso descobrir o que fazer. Não é o caso de um barulhinho que o cliente quer que se elimine e nos obriga a passar a pente fino todo carro. Aqui não. É uma correia de distribuição e nada mais. É tirar e substituir. É um trabalho rotineiro; estou farto de o fazer!
E o Pedro tranquilizou-me com as suas convicções e com o uso justamente do conceito de rotina no âmbito da sua praxis.

A tranquilidade adiada

Na semana seguinte, finalmente, para meu descanso, lá ficou o carro pronto. Mas não na hora prevista. Prevista com base nas suas rotinas. Com base na sua experiência e no tempo previsto pela "literatura" dos mecânicos, o livro de peças e tempo de substituição aí inscrito. Ficou pronto duas ou três horas mais tarde. Disse-me então:
- isto é preciso é calma. Já tenho tido casos muito piores.
Associei aqui a sua postura e tentativa de acalmar o cliente, não pela primeira vez, à relação dum médico com o seu paciente. Perguntei-lhe então, usando as suas próprias classificações:
- Mas houve algo de anormal? Algo fora da rotina?
- Eles prevêem 3 horas e meia para a substituição da correia. Eu até pensei em demorar menos tempo mas este carro tem ar condicionado, direcção assistida, etc. e então demorei mais tempo porque tive que desmontar isto, aquilo, ...
- Saiu então fora da rotina? Voltei à carga.
- Um bocadito. Mas isto com calma faz-se tudo.

Rotinas e vidas de professores

Senti-me aluno. Um doente. Algo de semelhante. O Pedro era quem me ensinava. Vim para casa e fiquei nesse dia a pensar nas rotinas dos professores, em algumas resistências às mudanças educativas e no habitus teorizado por P. Bourdieu, tudo isto em consequência da interacção tida com o Pedro.
Veio-me à cabeça que muitas das funções dos professor passam por ensinar a ler e a escrever. O modo como o fazem faz já parte das suas rotinas. E se lhes pedirmos para lerem e escreverem eles próprios? Eu próprio sou professor e muitos de vós que ainda aí estais a ler também o são, mas, sem querer ferir ninguém, não é verdade que se torna difícil para muitos professores escrever? Não é fácil. Claro que para alguns até é um prazer. Mas, e para os outros?
Na minha experiência de formador tenho constatado a dificuldade que alguns têm em passar do ensinar a escrever ao escrever, eles próprios. Os professores ficam inseguros quando não têm rotinas. Por exemplo, quando os mandam escrever uma reflexão. Será porque não há rotinas profissionais dessa prática?
E não será, também, que há muito a nossa profissão está rotinada no trabalho disciplinar? Não será que a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade são mais retórica que prática?
A área escola não tinha rotinas. Não chegou a ter rotinas. Dizem que "foi maltratada". O trabalho escolar funcionaria ao contrário. De baixo para cima. Da observação e pesquisa para as abstracções teóricas. É verdade que alguns professores viram nisto a legitimação de algumas práticas criativas que faziam interdisciplinarmente a partir da sua disciplina, já em anos muito anteriores à sua implementação. Outros, nem por isso. «Uma seca», ouvi eu tantas vezes.
Não será falta de experiência docente. Será talvez falta de flexibilização para sair da rotina de ser professor de acordo com determinado modelo escolar para um outro. De se estar rotinado numa escola positivista, normativa, dedutiva e disciplinar. Não é um problema de transição do velho para o novo, necessariamente. Apenas de um sistema com rotinas montadas para outro onde a todo o momento se tem que inventar porque o ano passado não serve de modelo para o ano corrente.
E que acontecerá com a gestão flexível dos currículos? Também não existem rotinas. Não há experiência normativa. É preciso criar. De novo a falta de rotinas: o trabalho projecto, entre outros, será, creio, um exemplo semelhante, ainda que aqui a sua natureza curricular esteja menos dissolvida na lógica transdisciplinar do que a área escola.

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação / Leiria


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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