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Territórios, Actores e Poderes

"Frequentemente considerados como anti-éticos, mundialização e formação identitária marcham em conjunto. É porque a mundialização crê que as identidades têm necessidade de se afirmar. O ganho central dos próximos anos é que aos actores identitários em vias de constituição lhe sejam também atribuídos os meios de se tornarem actores estratégicos. (...)"
Marisol Touraine

O debate sobre os territórios está na ordem do dia. É frequente os utilizarmos para espreitar, com toda a tranquilidade, as grandes manobras da globalização. A vista é rasgada e permite observar o anunciado fim dos Estados, dos países e das nações, em suma de todos os "antigos" territórios que nunca mais acabam de morrer.
Um pouco por todo o lado, vêem-se emergir novas territorialidades que dão corpo a uma "nova" economia, a "novas" tecnologias, a "novos" espaços de vida e mesmo a "novas" solidariedades, susceptíveis de transformar radicalmente as concepções clássicas da urbanidade e das suas hierarquias
O território como lugar da relação do indivíduo ou dos grupos com o espaço tem sido concebido ao longo das décadas, através de uma visão vinda de cima e do exterior, quer ele seja a autoridade política, a científica ou a do pragmático neutro e objectivo
Quando se procura a relação do território com uma das suas finalidades educativas, a de contribuir para a formação do cidadão, uma constatação se impõe: qual a concepção que a sociedade tem da sua organização territorial ?
Este problema constitui de facto um verdadeiro enigma de difícil resposta tanto no plano social como no teórico. Tudo se passa como se a própria sociedade desconhecesse a construção da sua própria edificação territorial.
É um facto constatável que os fenómenos e os eventos territoriais importantes para a dinâmica social e espacial mobilizam pouco a sociedade e menos ainda os cidadãos. Por exemplo em Portugal, ao contrário dos países do norte da Europa, o território é lugar da ordem do sensível, da intuição, da experiência pouco racional, encontrando-se os cidadãos, se e quando solicitados a reflectir e a agir perante uma certa forma " de analfabetismo territorial". Neste estado de fragilidade e de ambivalência, as representações são portanto construídas pelo outro.
Numa época que favorece a emergência de novos valores para o indivíduo que valoriza a visão pessoal do mundo, a responsabilização de cada um ou a tolerância para com os outros, a concepção do território não pode mais impor-se de uma maneira de ver do exterior que repousa essencialmente sobre normas gerais e critérios discutíveis a maior parte das vezes desligadas dos seus utilizadores.
Por outro lado a gestão dos territórios não pode mais ser exercida de acordo com o simples modelo de organização hierárquica de diferentes níveis de poder, mas como um processo complexo de coordenação, de negociação e de ajustamentos sucessivos entre poder político e cidadãos, isto é, uma nova forma de reorganização das relações entre os decisores eleitos e os cidadãos de forma a que as opções a tomar sejam baseadas na participação da cidadania local.
Um projecto de informação e formação dos cidadãos acerca dos territórios é dar-lhes a oportunidades de representar o seu verdadeiro papel. Ele deverá inspirar-se numa reflexão conceptual e metodológica susceptível de desenvolver junto dos mesmos uma consciência territorial, ligando e fazendo compreender o país e o mundo, o local e o global. Na expressão "consciência territorial", a palavra "consciência" evoca a presença da própria pessoa e a sua relação com os outros, com o colectivo. O cidadão toma consciência de um conjunto de fenómenos territoriais e, mais lúcido, torna-se capaz de identificar e de julgar por ele próprio o mundo exterior no qual deve fazer as suas escolhas, decidir e agir. Mas qual é este mundo? Quais são as suas componentes humanas e físicas? Como se revela ele?
São várias as tensões que se colocam em interelação nos territórios contemporâneos que criam dinâmicas novas, frequentemente conflituais, mas por vezes complementares. Elas estão relacionadas com a cidade, a natureza envolvimental, a paisagem urbana, a valorização dos recursos, o desenvolvimento das colectividades, a qualidade de vida dos cidadãos, o lazer e a recreação, etc. Elas supõem uma procura de novas estratégias territoriais conduzindo a uma reorganização das relações entre os grupos sociais e a criação de novas solidariedades. Estamos portanto perante uma postura intelectual e mental a inventar e a explicitar. Uma postura que deve orientar os comportamentos dos cidadãos de forma a construir os lugares sociais que permitam reivindicar os novos papeis de participação social e cultural no território a partir de pertenças múltiplas e mais convergentes.
Compreender, discutir e construir as territorialidades sociais e culturais é melhor conhecer o mundo contemporâneo e participar nas novas exigências que se colocam nas actuais sociedades
O cidadão formado, é um cidadão que adquire esta disposição de espírito que se encontra apto a identificar as novas compatibilidades entre a sua própria territorialidade e a dos outros e a imaginar e valorizar as estratégias comunitárias necessárias à sua afirmação no contexto espacial. Possuindo uma representação territorial na base de uma formação e não somente da intuição, ele torna-se sensível aos sinais da variedade cultural e melhor pode servir-se dos seus instrumentos para elaborar e participar em projectos criadores. A sua concepção torna-se mais cívica, compreendendo melhor a acção dos grupos e dos indivíduos sobre o espaço das sociedades contemporâneas. A competência que poderá adquirir pode chegar a um resultado que podemos chamar de "consciência territorial".
"Consciência territorial" que passa por uma aprendizagem que se constrói pouco a pouco, à volta dos lugares sociais e culturais que se tecem na malha territorial e contribuem para o exercício quotidiano da cidadania de forma a que cada indivíduo possua uma capacidade de compreensão, escolha e de criação do seu território contribuindo para a elaboração do seu próprio quadro de vida de reflexão, de produção e de prazer.
A compreensão e as decisões sobre os territórios dizem respeito a todos. As mesmas têm consequências sobre os modos de vida ou a recomposição das estruturas sociais. Fazer participar os actores que modificam, com a sua presença, a imagem dos novos habitats ou das novas formas de cultura urbana é procurar novos suportes de identidade colectiva que representam um importante papel interventor junto dos centros de decisão política.
Em suma, numa civilização em mutação em que o sentido da territorialidade muda de natureza, deve a revitalização dos territórios a todos interessar como forma de ritual colectivo sobre o futuro, tanto mais que se trata da vida duma sociedade quanto à síntese das suas escolhas de desenvolvimento.

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal
António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal

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