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Crise Sem Revolta

Os intelectuais são aborrecidos e atrapalham. Têm o costume de pensar e de problematizar. Não confiam na aparência. Querem aproximar-se da realidade. Querem analisar e explicar as coisas, discuti-las, antecipar de algum modo o futuro. Isto não colhe neste tempo de "obra feita", neste tempo de políticos que gostam de inaugurar no princípio, no meio e no fim. Não importa se a "obra" se revela inútil, se cai, se se torna fonte de problemas, se não corresponde ao que o povo precisa. O que colhe é fazer, fazer muito, fazer depressa, inaugurar bem. Colher os dividendos políticos da inauguração. Mostrar empenho. Agitação. Azáfama.
Os intelectuais terão perdido valor enquanto agentes de transformação social, ou de desenvolvimento se preferirem. Os intelectuais enquanto elementos de construção, transformação e dinamização da política, e enquanto agentes de criação e divulgação de ideologia apresentam-se obsoletos.
E, no entanto, na tradição de Gramsci, os partidos, e outras organizações políticas, seriam intelectuais colectivos. E seriam analisadores, aparelhos de detecção das linhas de fissura e dos campos de luta determinantes na sociedade. E constituídos por militantes - e não meros candidatos ao emprego e ao poder - que disporiam intelectualmente dos mecanismos mais capazes para processar a realidade.
Nestes últimos anos voltámos a um tempo anterior ao de Marx. Um tempo em que parecia não haver outro caminho que não fosse o capitalismo. A diferença é que agora parece que os intelectuais estão em desuso. Se os há oferecem-lhe emprego na condição de o deixarem de ser. Corrompem-nos. E muitos deixam-se corromper. Entre nós é doloroso ver como muitos intelectuais passaram a ganhar a vidinha com o emprego, julgo que bem remunerado, de comentadores. E comentam. E aterrorizam. E escrevem e falam da desgraça. E são brejeiros. Superficiais. Negam a sua condição de intelectuais. Cumprem os desejos de quem manda.
Os políticos que se negam como intelectuais e se gabam de estar livres deles, brindam-nos, quotidianamente, com o eterno discurso da crise. Discurso sublinhado e ampliado- e de que maneira! - pela comunicação social. Todos os dias ouvimos falar de catástrofes naturais, económicas, inflação, desemprego, insegurança, crime individual e colectivo, guerra, morte em todos os tons feitios e lugares.
Dizem que a Segurança Social está em crise. Da saúde nem se fala. A educação está um horror. O Sistema Judiciário desmorona-se. O prisional rebenta pelas costuras. A polícia não chega. Os deputados não legislam. Faltam serviços de segurança. As doenças, novas e antigas, progridem. O espectro da crise económica paira ameaçadora sobre o mundo.
Assim nos preparam para a aceitação do sacrifício, para a perda de direitos, para a impossibilidade de sonhar e de exigir, para a aceitação de novas formas de escravatura. O que se passa? O que está a desregular o mundo? Uns dizem que é uma crise passageira da economia (não será do capitalismo?); outros que é o advento de uma verdadeira mudança; ou ainda que é o anúncio de um "admirável mundo novo". Mas tudo isto nos é dito de passagem e em abstracto.
E, no entanto, o mundo está mais rico. Produz-se cada vez mais riqueza. A tecnologia avança a velocidade vertiginosa. A ciência progride. Sabemos cada vez mais de nós próprios. Conhecemos melhor as nossas qualidades e defeitos. Sabemos, cada vez com maior rigor, onde está a fome e a abundância. Conhecemos as doenças. A medicina progride. A Biologia desenvolve-se. A Física e a Química correm. A Antropologia e a Sociologia acompanham. A Psicologia avança. Conhecemos melhor os mares, o espaço, o interior do nosso Planeta e vamos conhecendo outros... Nunca soubemos tanto!
Abro a telefonia e ouço dizer que o Governo vai resolver o agravamento do deficit da despesa pública, começando pela Segurança Social. Vai reduzir o número de medicamentos comparticipados, vai aumentar o montante da taxa moderadora nas consultas hospitalares e reduzir o valor das reformas pagas pela Segurança Social, bem como o valor do subsídio de desemprego...
E tudo isto é apresentado como um acontecimento político e económico de primeira grandeza, a demonstrar grande coragem, espírito de decisão e de acção por parte do novo governo. O tempo do diálogo e indecisão parece assim ter chegado ao fim.
Fecho a telefonia, reconhecendo que estive e estou a ser preparado para aceitar tudo isto sem grande contestação, sem revolta...

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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