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Escolarização um direito?

"Somos todos irmãos porque descendemos
todos de uma só mãe, a terra."
Mahatma Gandi

Aparentemente estamos a atravessar uma época em que a conjuntura não poderia ser mais favorável. A «Década das Nações Unidas para a Educação» apenas vai terminar no ano 2004 e, por outro lado, a 'Comissão Nacional para as Comemorações da Declaração Universal dos Direitos do Homem' deverá, durante um período de 6 anos, fazer a divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e aprofundar a inserção na educação.
Porém, no que respeita à população cigana, em particular às suas crianças, a situação apresenta contornos de alguma gravidade pese embora surgirem, de vez em quando, afirmações em sentido diferente. Basta estarmos atentos às informações que vão aparecendo na comunicação social, ou então às informações estatísticas que, em cada ano, vão sendo divulgadas pelo Ministério da Educação. É inútil perdermo-nos com os números, refira-se tão-só que, na ausência de dados fiáveis calcula-se, a nível internacional, que cerca de 50% das crianças ciganas em idade escolar jamais frequentaram um estabelecimento de ensino. Para já não aludirmos aos que abandonam precocemente o sistema ou, aos que não vão além do 4º ano de escolaridade, predominando aqui as meninas.
O Povo Cigano, oriundo da Índia, dispõe de uma matriz cultural que desconheceu a escrita (até meados do século XX) facto que é fundamental ser tido em consideração e que levou Tullio De Mauro ao prefaciar uma obra recente a pôr o dedo na ferida: "Dê-mo-nos conta que aos pequenos ciganos que se sentam no banco em frente a nós estamos pedindo que façam, num só dia, sózinhos, de um salto, um percurso cultural que pais e mães e pais e mães de pais e mães cumpriram antes de nós e por nós há vinte, trinta, quarenta séculos, em oitenta, cento e vinte, cento e sessenta gerações. É uma tarefa imensa para eles e é, na verdade, muito difícl para nós (…). Não desprezemos esta lição: perceberemos melhor e saberemos regular melhor, gerir melhor até a nós próprios e ao nosso mundo (…)".
Apesar de, nos países democráticos, estarmos perante uma Escola aberta a todos, melhor será que ela seja antes organizada para todos. Quer dizer, que fiquem garantidos o exercício do direito ao estudo e a igualdade das mesmas oportunidades educativas entre os alunos que provenham de culturas diferentes, de ambientes socioculturais diversos ou que sejam detentores de dotes físicos e/ou intelectuais diferentes.
As palavras cultura e interculturalidade são determinantes para a formação da consciência da diversidade dos alunos e proporcionam uma convivência baseada no diálogo, na partilha e na cooperação, deste modo será a aceitação a impôr-se à tolerância uma vez que tolerar implica sempre, queiramo-lo ou não, uma atitude de superioridade. Por seu turno, o contacto da Escola com as famílias será uma óptima forma de poder conhecer aqueles que tem no seu seio e com quem lida (e não com quem é obrigado a lidar) no dia-a-dia.
Aqui, cabe destacar a importância e as vantagens que decorrem, para as partes envolvidas, do trabalho desenvolvido pelos mediadores no universo escolar - simplificam a relação inicial (e não só) entre professores e alunos, propiciam maior assiduidade e facilitam os contactos com a escola - podendo ser extensivo ao relacionamento familiar com as várias institutições, designadamente das áreas da saúde ou da administração pública.
Muitas vezes a Escola não tem na devida conta os múltiplos factores que dificultam a frequência escolar das crianças ciganas e que são, entre outros, os seguintes: o nomadismo e/ou a semi-sedentarização; as expulsões de uma zona geográfica para outra; a complicada teia da burocracia escolar; a deficiente higiene, por vezes devido às más condições em que vivem; as doenças e, não dispicienda, a recusa familiar em aceitar a instituição escolar. A questão da dificuldade das raparigas em frequentarem a escola resulta de um vasto conjunto de factores culturais e sociais que temos de deixar por abordar.
E, sem receio de errar podemos afirmar que menos ainda a comunidade educativa (no seu todo) pondera o conjunto de factores condicionantes da aprendizagem (pelo menos na fase inicial que é, sem dúvida, a determinante do respectivo futuro escolar) destes alunos, de entre os quais se podem destacar: a lateralização não consolidada; problemas de estruturação espacial e temporal; dificuldade de conceptualização e instabilidade emotiva.
De notar, todavia, que já ouvimos da boca de vários professores a afirmação de que as capacidades operativas dos alunos ciganos puderam já, algumas vezes, ser valorizadas e servir de estímulo aos respectivos companheiros da sala de aula.
Uma das agências das Nações Unidas, a UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO, realizou em Copenhaga, entre 6 e 12 de Março de 1995, a Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Social. Ora, num dos textos ali apresentados a importância de que se reveste a escolarização é salientada desta forma (cuja actualidade permanece incontestável): "No mundo de hoje, a educação não é só um direito, é a condição indispensável de todo o desenvolvimento. E ainda que a educação não baste para garantir o bem-estar económico e social das pessoas reforça o poder de decisão de cada indivíduo ao influenciar as suas atitudes, aspirações, conhecimentos e aptidões. Ao mesmo tempo, pelos seus efeitos na dinâmica da população e na vida social, cultural, económica e política, a educação contribui para melhorar a qualidade de vida, criando ou fortalecendo as condições necessárias para reduzir a pobreza."
Às portas de um novo século e de um novo milénio escasseiam os argumentos fundamentadores da actual situação relativa à escolarização das crianças e dos adolescentes ciganos. Importa, por consequência não perder mais tempo que só pode jogar contra, e nunca a favor, do futuro de quem já de há muito se habituou a que ele não existe.

Elisa Lopes da Costa
CIDAC/Lisboa

Para saber mais:

Children of Minorities - Gypsies, edited by Sandro Costarelli, Florence, UNICEF, «Innocenti Insights», 1993.

Elisa Lopes da Costa, O Povo Cigano em Portugal: da História à Escola. Um caleidoscópio de informações, Setúbal, ESE do Instituto Politécnico de Setúbal, 1996.

IDEM, "Os Mediadores Ciganos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa", in Multicultural, Setúbal, Centro para a Igualdade de Oportunidades em Educação da ESE, ano 4, nº 7, 2º Semestre 1996, pp. 4-6.

Giuliana Donzello e Bianca Maria Karpati, Un ragazzo zingaro nella mia classe, Paris-Roma, Centre de Recherches Tsiganes-Centro studi Zingari, Anicia, «Collana Interface» 1998. Prefácio de Tullio De Mauro e Introdução de Bruno Morelli.

INTERFACE, Tsiganes et Voyageurs, Education, Formation Jeunesse, Paris, Centre de Recherches Tsiganes, nº 1, février 1991 (em publicação, distribuição gratuita a pedido).

Jean-Pierre Liégeois, A escolaridade das crianças ciganas e viajantes, Lisboa, D.P.G.F. do Ministério da Educação, 1994.









  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa
Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa

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