Página  >  Edições  >  N.º 75  >  Sábados pela manhã Reflectindo por entre vendedores de roupa barata e de incenso

Sábados pela manhã Reflectindo por entre vendedores de roupa barata e de incenso

É aos sábados de manhã que a cidade de Leicester se transforma em si própria. Durante a semana, os nativos da terra ficam pelos arredores e o centro da cidade quase só é frequentado pelas centenas de estudantes universitários que se vão apropriando do espaço.
Mas é aos sábados de manhã que Leicester é devolvida aos seus mais antigos habitantes: sejam eles os ingleses propriamente ditos ou a comunidade indiana que também já considera a cidade como sua. É nesta pequena parte da semana que as famílias se deslocam ao centro da cidade para fazer as comprar para os dias que se seguem. O mercado é o expoente máximo do encontro das duas culturas.
As bancas de frutas e vegetais tradicionais partilham o espaço com bancas onde se encontram espécies de bananas nunca vistas, frutos desconhecidos, legumes com formas estranhas, especiarias cujos nomes não consigo reproduzir. Os vendedores de roupa barata estão lado a lado com os vendedores de incenso. Mas raramente se vêem famílias misturadas. Uns e outros insistem em preservar os casamentos entre si, com poucas excepções.
Aquilo que une os dois tipos de famílias desta cidade inglesa de média dimensão parece ser a ideia que tem em relação ao número de filhos. São muito frequentes os casais que tem três ou quatro crianças. Sejam de origem inglesa ou indiana. Por trás deste fenómeno estão os significativos apoios que o Estado inglês dava - até há alguns meses atrás - por cada criança. Aumentou a taxa de natalidade mas também a quantidade de mulheres que passaram a viver dos rendimentos conseguidos através dos filhos.
Enquanto estas famílias - que se podem considerar numerosas - circulam freneticamente pelas ruas que envolvem o mercado, ninguém parece reparar nos três homens que estão sentados num banco. Obviamente, vivem na rua. Obviamente, um deles está a entrar num estado assustador. Um dos outros abraça-o e abana-o à procura de uma reacção que teima em não vir. O terceiro limita-se a olhar. Ninguém oferece ajuda. Ninguém chama uma ambulância. Nem eu. Porque fico sempre à espera de ouvir uma resposta do tipo: "Isto não é nada contigo".
É assim que esta sociedade está a ficar. Enquanto isso, os políticos discutem os poderes que as escolas devem ou não ter e os cientistas trocam argumentos sobre as vantagens ou desvantagens de se produzir uma vacina com bactérias retiradas do solo. E eu questiono-me: "Será que estas famílias também passam ao lado das questões mais abrangentes ou mais específicas que mexem com a educação e com a saúde dos filhos?"
Poucas dessas famílias terão visto, em directo na televisão, um membro do Partido Conservador questionar as políticas do Partido Trabalhista levadas a cabo nos últimos meses em termos de educação. Na sua perspectiva, as autoridades locais inglesas têm vindo a controlar excessivamente a vida das escolas quando o que é preciso é "dar mais poder aos professores". O partido da oposição encontrou uma "fórmula de sucesso" para a educação: "Escolas fortes e professores confiantes para melhor educar as crianças".
Poucas dessas famílias terão visto, em directo na televisão, um microbiologista londrino defender a criação de uma vacina com bactérias retiradas do solo. Para ele, as preocupações com a higiene propagadas nos últimos anos tem vindo a ser as principais responsáveis pelo aumento das alergias entre as crianças. O raciocínio parece lógico: os miúdos já não contactam com as bactérias, portanto o sistema imunitário não consegue aperfeiçoar mecanismos de defesa. Nada melhor, então, do que a tal vacina! Nada de mais errado, contra-argumentam outros investigadores: "A sujidade continua a matar".
E eu ficarei sempre na dúvida. Estarão estas questões entre as preocupações das famílias das pequenas e médias cidades inglesas? Ou passarão elas o seu tempo livre a ver coisas bem diferentes na televisão? Não posso deixar de reparar na enorme quantidade de "soap-operas" que existem na televisão inglesa. Nem nos "talk-shows" onde as pessoas vão voluntariamente para criticar a mãe, o irmão, o marido ou o amigo. E onde as supostas vítimas vão voluntariamente defender-se e submeter-se aos ataques de um público que parece não ter telhados de vidro. Eu ficarei sempre na dúvida.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester / U.K.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo