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A Universidade: espécie rara, sempre em risco (terceiro texto de uma série de seis)

A Universidade: espécie rara, sempre em risco (terceiro texto de uma série de seis)

1. A lista de Peirce

No artigo anterior (cf. "A Página", Novembro de 1998) tecemos várias considerações colaterais acerca da investigação científica, entendida, de um ponto de vista antropológico, como um dos métodos fundamentais de fixar a crença. E logo de seguida relembrámos a lista, curta mas completa, que Charles Sanders Peirce estabeleceu, há mais de um século, com vista a enumerar os demais métodos, bem mais antigos (e também, intelectualmente, bem menos exigentes, embora de imenso valor normativo), de que os membros da nossa espécie se socorrem, mais amiúde, para alcançar o mesmo desiderato. Tivemos ainda tempo para caracterizar sucintamente um desses métodos pré-científicos, o "método da tenacidade". Neste terceiro artigo continuaremos a tarefa encetada, procedendo à caracterização dos dois outros métodos pré-científicos que constam da lista de Peirce: o "método da autoridade" e o "método da veracidade a priori".

Mas antes de prosseguirmos, gostaria de aproveitar o ensejo para insistir em dois pontos. O primeiro ponto prende-se com o facto de não ser possível, em minha opinião, entender cabalmente a especificidade da instituição universitária sem proceder à caracterização prévia dos quatro métodos constantes da lista de Peirce. Não vá, pois, o leitor julgar que divagamos ao procedermos em conformidade. O segundo ponto diz respeito ao próprio valor heurístico da lista de Peirce, tanto para a antropologia como para a filosofia da ciência. Tenho para mim, que, como tantas outras coisas saídas da pena deste autor, tal lista é, de todos os pontos de vista, um precioso legado que a memória curta dos homens (cientistas inclusive) deixou resvalar, injustificadamente, para um quasi-esquecimento. O texto onde ela aparece contem, em botão, uma teoria antropológica da_ciência como método (sui generis) de fixar a crença - e não conheço outra teoria da mesma índole que se lhe equipare em clareza e adequação explicativa. Como se isso fosse pouco, propôe-nos ainda (e com mais de cinquenta anos de avanço sobre Popper) uma teoria epistemológica do raciocínio científico, concebido como processo de formação conjectural de hipóteses explanatórias, cuja fecundidade/veracidade está sujeita a comprovação ou refutação através de uma experimentação crítica e autocontrolada das predições ou retrodições que se podem extrair da(s) hipótese(s) adoptada(s).

Apesar da sua dupla importância, antropológica e epistemológica, a lista de Peirce e as suas implicações raramente são invocadas quando se discute a ciência de um ponto de vista antropológico - entenda-se: não o ponto de vista da chamada antropologia física (que é apenas outro nome para a secção da zoologia que se ocupa do animal humano), onde elas são irrelevantes, mas sim o da antropologia propriamente dita, também denominada antropologia cultural ou antropologia social. O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, da vasta literatura relativa ao que se convencionou chamar filosofia da ciência (incluindo nela "clássicos" modernos como Popper, Lakatos, Bachelard, Canguilhem), onde, salvo erro, não nos lembramos de ter visto a lista de Peirce comentada ou sequer mencionada com o relevo que merece. E agora, passemos ao método da autoridade. 2. O método da autoridade

O método de autoridade é o que consiste em fixar a crença por recurso à opinião ou referência à situação de uma entidade presumidamente detentora da verdade ou, pelo menos, de canais de acesso privilegiado à verdade. Tal entidade tem mil nomes, tantos quantos as culturas que a alimentam e reproduzem, uns grandiloquentes ou pomposos (e.g. rei dos reis, sua santidade, duce, führer, pai dos povos, caudilho, grande timoneiro, grande educador da classe operária); outros mais comuns mas insinuantes de um carisma ou ascendente especial (e.g. rajá, sheik, sheriff, chamã, padre, mentor, guru, mãe de santo, profeta, perceptor, mestre, tutor, comandante, pastor, padrinho). A entidade alegadamente detentora da verdade ou considerada como sua fiel depositária, não precisa de ser forçosamente um indivíduo de carne e osso. Pode tomar a forma difusa de um grupo mais ou menos numeroso (e.g. o povo eleito), de uma instituição ubíqua (e.g. o mercado) ou secreta (e.g. a Camorra) ou domiciliada e com endereço na lista telefónica (e.g. a (ex-) alta autoridade para a corrupção, o FMI, a OCDE). Noutros casos ainda pode tomar a forma de uma tradição mais ou menos codificada (e.g. a praxe coimbrã, a lei de Lynch, o Código de Hamurabi), ou, mais abstractamente, de um livro sagrado (e.g. os Vedas, o Talmude, a Bíblia, o Corão, o livro vermelho de citações de Mao-Dze-Dong).

Desde os tempos mais remotos, este método de fixar a crença tem sido um dos principais meios de manter doutrinas teológica ou politicamente "correctas" e de preservar o seu alegado carácter universal ou católico ao abrigo da dúvida. Onde quer que haja uma aristocracia, ou uma guilda, ou um partido, ou qualquer associação de uma classe ou casta de indivíduos cujos interesses dependem, ou passam por depender, do assentimento geral em certas proposições tidas por indubitáveis, encontram-se inevitavelmente as marcas vísiveis deste método ou, pelo menos, alguns dos seus resquícios. Quando o completo assentimento já não pode ser atingido pela reiteração dos meios habituais, sucede-se, em regra, um período de exacções e violências destinadas a aterrorizar os hereges e descrentes.

Para os reduzir ao silêncio, empregar-se-à toda a parafrenália da crueldade, da mais comezinha trapaça à humilhação pública, da perseguição à excomunhão, da prisão à tortura, do massacre selectivo ao genocídio. Todavia, à semelhança do que fizémos com o método da tenacidade, convem que deixemos dito, por respeito pelos factos, que o método da autoridade pode, ele também, reivindicar grandes feitos. Com excepção das épocas geológicas - observou Peirce - não existem períodos de tempo tão vastos quanto aqueles que ainda hoje medimos pela duração dos grandes impérios e das grandes religiões organizadas que ao método da autoridade devem grande parte da sua excepcional longevidade. Do mesmo modo, ao método da autoridade se devem algumas das mais imponentes estruturas com que o engenho humano procurou rivalizar arquitectónicamente com as grandes obras da natureza. As pirâmides do Egipto faraónico ou a grande muralha da China imperial, para citar apenas dois exemplos dos mais óbvios, são obra desse método.

3. O método da veracidade a priori

Nenhuma instituição, porém, por mais megalómana que seja, pode acalentar o desígnio de regular as crenças em todos os domínios e relativamente a todos os assuntos humanos. Apenas os mais importantes poderão ser atendidos, se o empreendimento quiser ter algum êxito. Quanto aos demais, a mente humana terá que ser deixada à mercê da acção dos factores naturais. Do ponto de vista do método da autoridade trata-se, bem entendido, de uma "imperfeição". Mas tal imperfeição não será interpretada como um sinal de fraqueza enquanto a maioria dos homens viver num estado de cultura em que uma opinião fora da norma pouco ou nenhum efeito possa ter - ou seja, enquanto o horizonte mais largo do comércio das ideias for o que se avista da torre do seu campanário.

Mesmo assim, mesmo nos estados mais férreamente organizados pelo método da autoridade, existem indivíduos que são educados acima dessa condição. Esses indivíduos viajam, observam, meditam e lêem mais do que a generalidade dos seus contemporâneos. Não raro o curso dos seus pensamentos leva-os a duvidar deste ou daquele artigo de fé comumente aceite. De dúvida em dúvida, ei-los que entram, sem quase se darem conta, em rota de colisão com as doutrinas estabelecidas pelas autoridades do seu tempo. E quase inexorávelmente, o passo seguinte poderá levá-los a interrogarem-se acerca da possibilidade de se encontrar um novo método de superar a dúvida que não só produza um impulso para acreditar, mas que também ensine que proposição é digna de crédito. É este o terreno onde nasceu o "método da veracidade a priori". O seu mais perfeito exemplo pode ser encontrado na história da filosofia metafísica.

(continua)

P. S: No artigo anterior, escrevemos, por lapso,
"quem não faz sacrifícios não poucas vezes alcança benefícios".
Há um "não" que está a mais.

José Manuel Catarino Soares
Escola Superior de Educação / Setúbal


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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