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Algumas Hipotecas Graves da Cultura Ocidental

[a anteceder, não inocentemente,
as páginas ditas das multiculturalidades]

1. - Enquanto Sistema/Mundo (adoptando, muito justamente, o conhecido conceito de F. Braudel), tal como ele sempre pretendeu na Idade Moderna, mas, apesar disso, também contra os veros propósitos e desígnios do próprio 'pai fundador' A. Smith e outros seus pontífices críticos, o capitalismo moderno transformou-se, com o neoliberalismo planetário de hoje-o qual, para ganhar acolhimento na opinião pública, até pretende hodiernamente disfarçar-se com as vestimentas do 'social-liberalismo' (!...), mas que, não obstante, já começa definitivamente a ser contrariado e repelido até por alguns dos chamados 'tigres asiáticos' (v. g. a Malásia)-num sistema de pura e simples krematística, segundo a designação crítica da Economia política formulada pelo próprio Aristóteles: um Sistema de pura e simples Economia das Coisas, mais exacto, Econocracia das Coisas, império absoluto das Coisas sobre os seres humanos, sobre os indivíduos-pessoas que, no caso de não disporem de poder directo (como acontece com a grande maioria da população mundial), só lhes resta contarem como apéndices (mais ou menos excluídos ou excluíveis) de uma grande e infernal Máquina, socorrendo-se apenas, ou da caridade/mendicidade, ou dos subornos e das cumplicidades com os poderes estabelecidos ! . . .
Explicitando e concretizando melhor: A Economia das Pessoas em função das Coisas (com a sua característica duplicação/desdobramento, de que a Especulação financeira e a Instituição da Bolsa constituem a prova real...) tornou-se a Regra absoluta: sob o triunfo da Cultura do Poder-dominação d'abord, são o cousismo e o impessoalismo que imperam. E não foi a Economia capitalista que zurziu e anatematizou o 'colectivismo comunista', por impessoal e esclavagista?!... Ora, essa Economia das Pessoas em função das Coisas é preciso e urgente substituí-la pela Economia das Coisas em função das Pessoas. Assim, em lugar da pura krematística, que Aristóteles já tivera o cuidado de denunciar, é preciso implantar, com urgência, uma Economia, necessariamente social e humana, digna desse nome. E esta-tem de advertir-se- não é seguramente a moderna e contemporânea economia capitalista/neoliberalista!... Chega de sofismas, hipocrisias, mentiras.

2. - Nos passados anos '50 e '60, ainda se consideravam, com algum respeito e as respectivas consequências positivas, os binómios Ciência//Sociedade, Ciencia//Cultura, postulando-se, a partir da sua problematização crítica, exigências sérias de um relacionamento cruzado entre os seus dois termos e, logicamente, em benefício de ambas as partes. Embora se começasse, já então, a tomar uma consciência viva e dramática de que, no pleito entre os Indivíduos e as Organizações, sobremaneira no confronto com as mega-organizações, acabavam por ser sempre as Organizações que prevaleciam e levavam a melhor sobre os Indivíduos, aquele famoso Princípio das Tecnologias Adequadas ainda fazia sentido e rompia o seu caminho. Esse Princípio-lembram-se?! -foi defendido e praticado muito especialmente pelo Socialismo sueco do malogrado Olof Palme (em particular, no concernente às relações político-sócio-económicas com os países do 3 ° e Mundos), chefe digníssimo do último Governo ocidental que protagonizou e defendeu tal Princípio salutar e fecundo.

3. - Depois do requiem pelo Princípio das Tecnologias Adequadas, o que é que as marés trouxeram à praia?... Foi a selvajaria mais rude e brutal que acabou por vingar no Sistema capitalista mundial, o qual, expelindo borda fora, a partir dos anos '80 especialmente, o referido Princípio, iniciou aí mesmo, mediante esse processo e esse comportamento, o seu pretendido percurso de globalização mundial, sempre acompanhado e reforçado pelos lúbricos alvissareiros das sucessivas revoluções/inovações tecnológicas, que se foram acumulando em catadupa (aumentando a própria velocidade da História); ao mesmo tempo, por definições de incontornáveis 'conveniências lucrativas', o Sistema capitalista mundializado acabou por decepar o tradicional 'Estado Providência' e por dissolver os mais elementares tipos de 'Estado Social'.

4. - Com a queda do 'Muro de Berlim' ('89-90), é sabido que o Sistema capitalista deixou de ter (para o bem e para o mal...), institucionalmente (!...), o seu rival, o seu inimigo de estimação (que a 'Guerra Fria' entre os dois blocos não deixava de alimentar e fortalecer). Efectivamente, o chamado projecto socialista, que historicamente havia recomeçado (assim era suposto...) a ser erguido desde a 'Revolução de Outubro' e que era tomado pelo grande projecto do século XX, deixou-se enredar, ele mesmo (além das mutilações causadas pelo adversário...), em tais confusões e contrafacções, que o chamado 'mercado livre' advogado aparentemente pelo Neoliberalismo hodierno, se configurou como e ganhou foros de o único caminho legítimo e possível.

5. - Bem analisado o processus da actual globalização mundial, temos de concluir que, na verdade, não é propriamente, e por enquanto, a Economia que está a operar a globalização planetária, mas, outrossim, as tecnologias da cibernética/electrónica/informática, asseguradas e protegidas pela economia financeira. Não se tome, pois, a nuvem por Juno!... Uma prova disso mesmo, ainda que episódica, pode encontrar-se no chamado 'Acordo Multilateral sobre o Investimento' (AMI), concebido e elaborado (pasme-se!...) dentro da própria O.C.D.E., convenção essa que procurava, de facto, constituir uma economia globalizada para o século XXI. De facto, aquilo que foi chamado o novo manifesto do capitalismo mundial foi elaborado no próprio seio da O.C.D.E., à sorrelfa dos cidadãos (cf. 'Le Monde Diplomatique', Fevereiro de 1998, p.22). Ora tal acordo não veio a ser, felizmente, viabilizado, precisamente porque, entretanto, se interpôs, contrariando o desígnio, um largo e forte movimento de cidadãos.
Num tal contexto-o de que a globalização planetária hoje em curso é mais obra das novas tecnologias electrónico-informáticas do que da economia política propriamente dita-, é de toda a conveniência advertir-se para as consequências que se encontram em jogo no processus: entre outras, deve saber-se, por exemplo, que com a Internet (tal como ela se acha em estruturação/desestruturação), é o próprio fim da vida privada que se antolha no horizonte próximo, é a liberdade individual que se põe à venda, a tal ponto que se tem de postular hoje, em contraste, o chamado direito ao anonimato (cf. 'Le Monde Diplomatique', Setembro de 1998, p.23).

Manuel Reis

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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