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A Universidade: espécie rara, sempre em risco

[(2) Segundo texto de uma série de seis)]

1. Uma emenda tardia

O artigo anterior terminava por uma asserção e uma promessa. A asserção era esta: a investigação científica é (apenas) um dos métodos ao nosso dispôr - o mais recente, o mais exigente e o mais produtivo- no que respeita à necessidade permanente de fixarmos as nossas crenças, dando-lhes, se possível, a forma suprema de credo inevitável. A promessa era a de compararmos os méritos e deméritos relativos dos vários métodos destinados a satisfazer essa necessidade, tanto mais que a tarefa dela resultante se revela ser, afinal, _historicamente interminada e interminável - pelo menos se a avaliarmos sob o prisma dos critérios que conferem ao método de investigação científica a sua individualidade.
Mantenho tanto a promessa como a asserção. Todavia, se pudesse voltar atrás, emendaria a mão para escrever, desta vez, "elucidativo" ou "compreensivo", em vez de "produtivo". Não tanto porque "produtivo" esteja, de todo, mal empregue nesse contexto, mas porque me dei conta, demasiado tarde, das suas possíveis (embora, no caso em apreço, indesejadas) conotações económicas e das suas (ainda mais indesejáveis) conotações economicistas.

2. Ciência como força produtiva é já outra coisa

Por isso, peço ao leitor que afaste do espírito qualquer ideia de que a referida asserção pretendia ou pretende reiterar o teorema de economia política segundo o qual "a ciência é uma força produtiva". Ela será isso, também, em muitos casos (mas não em todos), nomeadamente quando toma a forma mais tangível de ciência aplicada e, em particular, de tecnologia ou engenharia. A maioria das pessoas só está familiarizada com a ciência sob estas formas, que detêm, aliás, uma permanente cota de fascínio junto do jornalismo dito científico e da literatura e do cinema de ficção. Daí que, por exemplo, o senhor Bell, o senhor Edison, o senhor Eiffel ou o senhor Marconi (ou até o doutor Frankenstein, o doutor Jekyll ou o doutor Strangelove), todos eles grandes e criativos engenheiros-inventores - bem como as criaturas algo teratológicas, como o chimpanzé Nim Chimsky ou a ovelha Dolly, fruto da imaginação dos seus pares mais recentes - sejam, ainda hoje, mais conhecidos e, num certo sentido, mais reais, no imaginário científico do grande público, do que todos os cientistas juntos (do passado e do presente) e toda a ciência genuína que eles fazem nascer ou crescer.
A tecnologia e a engenharia (incluindo nelas a tecnologia social e a engenharia institucional) correspondem, porém, a um estado construído da ciência que não é o primordial. O estado primordial, decisivo, é o que resulta da tentativa de superar a dúvida legítima e fixar a crença relativamente a situações-problema não-triviais cuja solução adequada tome a forma obrigatória de uma explicação teórica. À tecnologia e engenharia correspondem os estados secundários que resultam da tentativa de prevenir, remediar ou superar situações-problema (triviais ou não) cuja solução adequada tome a forma obrigatória de uma intervenção prática, nomeadamente quando o êxito de tal intervenção dependa crucialmente de procedimentos, algoritmos, dispositivos ou artefactos, que só possam ser cabalmente explicados, construídos, testados, simulados ou calibrados com o auxílio das luzes que a ciência teórica do momento possa fornecer.
Consideremos alguns exemplos, para fixar ideias, como sejam as técnicas de clonagem laboratorial de organismos complexos (que nos deram a "Dolly"); as técnicas de sondagem de opinião (que nos dão a conhecer as tendências actuais de voto no referendo acerca da chamada "regionalização admnistrativa" da República Portuguesa), ou as técnicas de síntese de substâncias destinadas a remediar disfunções fisiológicas (que acabam de nos dar o "Viagra)". No regime económico vigente, técnicas como estas, que se podem "prima facie" reportar à ciência aplicada - biologia genética, sociologia e química aplicadas, nos casos em apreço - possuem também uma outra propriedade. É ela a de poderem emigrar para o reino da mercadoria e de, por essa via, virem afectar as nossas vidas mais poderosamente do que o mais poderoso dos ditadores alguma vez sonhou. Por outras palavras, sendo embora figuras da actividade pensante da mente humana, e como tal físicamente intangíveis, estas técnicas são também susceptiveis, de um certo ponto de vista, de serem tematizadas como uma "força" mediata ou imediatamente presente no processo de produção de bens e serviços. O facto de as aplicações industriais da ciência (engenharia genética, indústria das relações públicas, indústria farmacêutica, nos casos referidos) poderem afectar os activos financeiros transaccionados nas "bolsas de valores", constitui uma prova suficiente da sua eventual (re)categorização, não já como categoria importante da antropologia cultural mas como categoria, igualmente importante, da economia política. Mas é a própria ciência, enquanto investigação científica, não as metamorfoses mercantis que os seus resultados propiciam, que devemos primeiro discutir, se quisermos entender o que faz a especificidade da universidade.

3. Ciência em movimento, apenas

Assim sendo, gostaria de deixar bem claro que sempre que falarmos de ciência ao longo destes artigos, não falamos de ciência já feita, ciência "in posse", nem, muito menos, de ciência já domesticada sob o modo instrumental da técnica. Salvo menção em contrário, falaremos sempre de ciência pura, que o mesmo é dizer ciência em estado nascente, ciência em movimento, ciência "in fieri", em busca incessante de soluções para problemas de explicação - numa palavra, investigação científica. A distinção merece que voltemos a falar dela, mais tarde, porque a sua persistente confusão conduz ao completo obscurecimento e, no limite, à completa perversão da ideia-matriz da universidade.
Para já, cumpre-me dar satisfação à promessa feita no artigo anterior: que outros métodos de fixar a crença existem, além do método da investigação científica? Na medida em que aceitemos discutir a ideia segundo a qual - conforme escrevemos no artigo introdutório desta série (cf. "A Página", Setembro 1998) - a universidade não existe sem um vínculo especial e permanente à investigação científica, a pergunta é incontornável e prévia, se quisermos determinar a natureza desse vínculo. Em que diferem, então, os demais métodos de fixar a crença do método designado por investigação científica? Que vantagens e desvantagens podemos atribuir-lhes nesse confronto?

4. Métodos de fixar a crença

Eis a lista, curta mas completa, desses outros métodos (tal qual foi originalmente estabelecida, com inexcedível perspicácia, por C.S. Peirce em 1877): o método da tenacidade, o método da autoridade, o método da veracidade "a priori". Passemo-los em revista, um por um, seguindo a mesma ordem em que foram enunciados.
O método da tenacidade é, no seu pior, um outro nome para a ignorância militante. Mas antes de lá chegarmos, convem começar por apresentá-lo no seu melhor, para que possamos tratá-lo com justiça, como se impôe.

5. O Método da tenacidade

Seja então a fé (religiosa ou laica, para o caso tanto faz) no que nos apraz tomar por certo e seguro, que é um dos mais ilustres pseudónimos correntes do método da tenacidade. "A fé remove montanhas" - ouvimos amiúde dizer. Não se pode dizer que a afirmação, velha de séculos, seja (sempre) descabida. Pensemos, por exemplo, nos Descobrimentos portugueses. Presumo que uma parte, não contabilizável, do seu êxito se deve ao método da tenacidade. "Navegar é preciso", terá sido, porventura, o seu lema subliminar. No plano individual, o método da tenacidade têm também muitas e vastas aplicações, nem sempre decepcionantes. "Quem procura sempre acha, se não é um prego é uma tacha", diz o rifão, não sem alguma razão. Compreender-se-á, assim, que o método da tenacidade possa ser fonte de algumas (pequenas e grandes) satisfações emocionais. Quem acredita estar de posse de uma verdade importante - ainda que vagamente pressentida e, na sua forma primeira, dificilmente comunicável - consegue, muitas vezes, continuar o seu caminho, contra ventos e marés, ou até, em casos-limite, extrair da sua crença forças anímicas suficientes para enfrentar estóicamente as agruras da adversidade. O rifoneiro português regista muitas das melhores máximas que caracterizam esta atitude: "Quem queira durar aprende a suportar"; "Quem não faz sacrifícios não poucas vezes alcança benefícios".
Tudo isso se concebe bem, pelo que_tem inteiro cabimento inscrevermos, na folha de serviços do método da tenacidade, um extensíssimo rol de gestos admiráveis e feitos heróicos. Sem entrarmos em linha de conta com o método da tenacidade, sem apreciarmos devidamente o que ele tem de racional (ou talvez devessemos dizer, para evitar melindres, para-racional, pré-racional), uma parte da experiência humana permaneceria completamente inacessível a qualquer explicação válida.
Recordemos, a título de exemplo, a experiência das pessoas que resistiram no "ghetto" de Varsóvia durante a ocupação alemã, ou a experiência dos que resistiram nos campos da morte lenta ou da morte rápida e por atacado - Tarrafal, Auschwitz, Buchenwald, Vorkouta e tantos outros lugares semelhantes - onde só o método da tenacidade dava sentido imediatamente útil ("resistir é preciso!") à crença dos prisioneiros numa realidade conforme à palavra "humanidade".
Há, porém, um ponto onde o método da tenacidade revela os seus estreitos limites como meio de superar a dúvida e fixar a crença: a sua inclinação para ignorar ou suprimir os factos incómodos, o seu menosprezo tácito por tudo quanto possa desafiar a razoabilidade do hábito ou fazer perigar a veracidade da fé que o sustem ou que directamente as possam contraditar. "Prefiro não saber, para não perder a paz de espírito"- é, nesses momentos traiçoeiros, o seu lema fatal. Tal como a avestruz que enterra a cabeça na areia para não ver um perigo iminente, também aqueles que preferem não saber fecharão os olhos e os ouvidos à evidência susceptível de abalar as suas crenças.
Para voltarmos, de outro modo, ao nosso exemplo anterior, pense-se na actuação dos membros da direcção central da Cruz Vermelha durante a 2ª Guerra Mundial. Eles sabiam (e não eram os únicos a sabê-lo, fora da Alemanha, por inerência de funções) da existência dos campos de extermínio do regime nazi. Mas preferiram ocultar essa informação, em nome da eficácia do que entendiam ser a sua missão: salvar "prisioneiros de guerra", não "prisioneiros civis". Em nome desta especiosa distinção, os dirigentes desta meritória organização humanitária consentiram em cobrir com o seu silêncio o programa nazi de extermínio apelidado de "solução final", deixando-se assim atraiçoar pelo seu método preferido.

[continua]

José Manuel Catarino Soares


  
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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