Falar de identidade é falar assim de complexidade dialéctica. De construção dinâmica, de constante reestruturação - constante metamorfose - para um novo todo. Mas o todo não é uma mera soma de partes como muito bem frisou Durkheim. O todo - e a identidade é um todo complexo - não pode ser inferido a partir das qualidades das partes. Por isso não há determinismo no comportamento humano. Semelhantes trajectórias e similares modelos de influência podem produzir até diferentes identidades. Podem criar cidadãos com identidades, práticas e representações sociais até antagónicas. Este mistério, esta imprevisibilidade, parece ter origem na forma como se combinam os elementos desse todo. E entre pessoas, isso é parte da subjectividade de cada um que urge no entanto estudar para comprender como se forma o ser. Vejamos todavia um primeiro exemplo bem mais objectivo, retirado do domínio das Ciências da Natureza, onde o princípio identitário que referi atrás, vale da mesma maneira: "Dois e dois não são quatro". Um e um pode ser igual a um. É o que acontece com um átomo de cloro ao juntar-se com outro átomo igual; origina uma molécula de cloro. As partes e o todo são quimicamente diferentes. A nova entidade é uma molécula; as partes são átomos. 1 e 1 = 3. O termo "e" não é sinónimo de adição. O termo "e" evoca apenas a presença de dois elementos, ou de dois objectos de cuja combinação resulta uma nova identidade. Um frasco cheio de cloro aberto é perigoso. Um pedaço de sódio também; é um metal explosivo. Contudo, da junção de um átomo de cloro com um átomo de sódio, resulta o cloreto de sódio, o nosso familiar sal de cozinha, que é inofensivo. As sua propriedades não podem ser inferidas a partir dos dois elementos que o compõem. Todas as associações acabam por ser um pouco imprevisíveis. A complexidade do todo, de um objecto físico, de um grupo social, de uma identidade pessoal, etc., é tal, que se torna extremamente difícil resumir o seu comportamento a uma sucessão de determinismos em que os factos sejam explicados por uma listagem de relações do tipo causa-efeito, como em parte propôs Descartes (1596-1650). A seu ver, o cientista deveria desmontar um fenómeno complexo em elementos o mais simples possíveis. "Dois e dois não são quatro! Dois elementos diferentes associam-se para criarem um terceiro que, até ali, não existia. A matéria não sabe aritmética" (Jacquard, 1997: 11). A Auto-construção Contudo, o problema torna-se ainda mais complexo no domínio das identidades pessoais e culturais. Esse todo identitário - o homem - é construído e constrói-se a si próprio. "Entre a acção dos outros (heteroformação) e a do meio ambiente (ecoformação), parece existir, ligada a estas últimas e dependente delas, mas à sua maneira, uma terceira força de formação, a do eu (autoformação). Uma terceira força que torna o decurso da vida mais complexo e que cria um campo dialéctico de tensões, pelo menos tridimensional, rebelde a toda a simplificação unidimensional" (Pineau, 1985: 65). Na construção da identidade pessoal, a criança serve-se da alteridade para se construir e se afirmar. A tomada de consciência do eu e do outro, faz-se tanto pelo jogo de oposição e demarcação (enclausuramento no nós cultural) como pelo da assimilação (abertura à diferença). Nos dois casos há comunicação, processos interactivos caracterizados pela existência da percepção da alteridade. Com o crescimento, a criança constata cada vez mais o outro. Vê-o na televisão, encontra-o na escola e noutros grupos sociais onde vai cada vez mais interagindo. A criança, entretanto adolescente, vai descobrindo a alteridade sociocultural: outros comportamentos, outras referências, outras representações, outras religiões, outras etnias, etc. O jovem adolescente vai então arrumando a diversidade aprendendo a identificar e a classificar as diferenças. Começa a fazer a aprendizagem da diversidade cultural. Mas fica em aberto o modo como arruma a diversidade: de forma hierarquizada, desigual ou não, simplesmente alternativa, etc. A identidade e a alteridade constroem-se neste processo de interacção onde o indivíduo percorre o caminho entre o nós e o outro que vai descobrindo. O indivíduo acede à consciência de si, por diferenciação dos outros e assimilando a identidade do grupo que designa e identifica como seu. Mas, mesmo que o mundo estivesse em desconstrução, a criança faria ainda tudo para se construir. O homem constrói-se duma forma ontológica. Há como que uma pulsão, uma força de querer, que nunca se satisfaz e que é não determinável mas formulável. Assim, cada homem quer transformar o que não é seu naquilo que quer, e que quer que seja seu. Busca assim uma síntese com a acção que ele quer. Constrói-se assim o Eu. Uma construção cuja matriz cultural é o outro. São os outros que constituem os referenciais; ou pelo menos, parte dos outros reajustadas ao eu que se torna assim num nós. É efectivamente o outro que dá sentido ao eu. Surge assim um projecto de existência. Depois é-se outro. Foi-se metamorfoseado, reconstruído. Mas é o homem que se autocria na globalidade. Recria-se um novo eu, um novo outro, um novo mundo. É por isso que só com os outros e com o contexto a pessoa é. A mudança pessoal e social também só é assim possível para uma nova totalidade. Mudar é reconstruir a identidade pessoal, profissional, etc. Vinicius de Moraes, poeta brasileiro, escreveu em poema o operário em construção. E com ele termino justamente com um trecho onde o autor me parece colocar bem a dialéctica da construção social: O operário em construção [...] Mas ele desconhecia Esse facto extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. [...] O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia - Exercer a profissão - O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia. [...] Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção. (MORAES, 1988: 98-102) 15 de Outubro de 1998 Ricardo Vieira doutor em Antropologia Social mop48909@mail.telepac.pt Bibliografia referenciada JACQUARD, Albert (1997). Matéria e Vida, Lisboa: Texto Editora. MORAES, Vinicius de (1980). O Operário em Construção e outros Poemas, Lisboa: Dom Quixote. PINEAU, Gaston (1985). "A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação", in NÓVOA, António; FINGER, Matthias. O método (auto) biográfico e a formação, Lisboa: Departamento de Recursos Humanos / Ministério da Saúde.
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