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Investigação virtual

No quadro de mudança que (parece) se desenha para o 1º ciclo do ensino básico, persistem fenómenos de involuntária ocultação de realidades que urge relevar, por mais absurdas ou chocantes que possam parecer. Também se pode pecar por omissão nas realidades que os estudos não contemplam, nas perguntas que não levantam, nas indignidades que não denunciam.
Tomei uma investigação ao acaso entre as inúmeras disponíveis, apenas um dos muitos exemplos que aqui poderia citar. Realizado há cerca de dez anos, o estudo reflectia enviezamentos idênticos aos de outras investigações que nunca lograram penetrar algumas idiossincrasias do primário. Confundia, por exemplo, intenções legislativas com a sua operacionalização em concreto. Referia "medidas concretas no sentido de democratização da escola" (após o 25 de Abril), apontando como mais significativas: a introdução de novos programas, a estruturação das quatro classes em duas fases, a revisão da avaliação, as dotações de material escolar, a gestão democrática das escolas e a redefinição do papel do inspector.
Quem se quedasse por uma leitura menos avisada desse estudo dele retiraria distorcidas ilações. A autora recorria a expressões como: "a avaliação foi revista"; "esta medida (da estruturação em fases) visava"; "tentou-se a avaliação contínua"; "foram reconhecidas as necessidades em material escolar"; "adoptou-se a gestão democrática das escolas"; "eleitos coordenadores pedagógicos", "redefiniu-se o papel do inspector". Porém, sem nada acrescentar de imediato que informasse e esclarecesse que, salvo raras e honrosas excepções, os novos programas jamais foram efectivamente implementados, as fases jamais foram praticadas, a avaliação permaneceu selectiva, as necessidades em material escolar continuaram por satisfazer, a gestão democrática não existia e as atitudes dos inspectores pouco se afastavam do antes de 74. Sem nada acrescentar, de imediato, que mostrasse o desfasamento entre medidas legislativas e a sua concretização, o estudo incorria no risco de escamotear (ainda que involuntariamente) algumas dolorosas realidades.
Se tomássemos como referência "algumas medidas de revalorização e de re-orientação do estatuto e do papel do professor" como "o desenvolvimento de Bibliotecas escolares em cada zona", poderíamos tomar como dado para novos trabalhos que essas bibliotecas foram (ou são) medidas significativas da revalorização e re-orientação do estatuto e do papel do professor do ensino primário quando, efectivamente, não o foram. Ressalvadas raras excepções, essas bibliotecas estão há vinte anos encerradas nos armários.
O desenvolvimento pessoal e profissional dos professores (ainda e apesar de tudo) primários foi sempre condicionado por factores de natureza sócio-política e cultural que ainda resistem a uma inventariação.
As precárias condições do exercício da profissão de professor primário sempre agiram "como factor de desencorajamento e de cansaço" e foram sempre entendidas como "sinal de um certo desprezo das autoridades oficiais pela escola primária". Nas entrelinhas dos normativos subsistiam (e ainda subsistem) certos resquícios do senso comum legislativo que tendiam a considerar que o professor primário tinha a gestão que merececia, compelindo-o à interiorização de sentimentos de subalternidade.
Urge escapar à lógica dos estudos que, ao estudarem a escola do (agora) primeiro ciclo, frequentemente escamoteiam as condições de subjectividade em que decorrem e a indecifrável densidade de fenómenos em que o difícil quotidiano da escola (ainda) primária toma expressão. A elucidação desses fenómenos talvez passe pela consideração do isolamento imposto, consentido e interiorizado em décadas de discriminação. Mas também talvez se efective na denúncia da profunda humilhação sofrida por um ciclo de ensino que, paradoxalmente, foi, neste século o cadinho dos movimentos de inovação mais ousados e consequentes.
A que propósito surge este recado, eu não sei. Quando se escreve por impulso, a emotividade retira-nos discernimento. Mas haverá, certamente, qualquer razão oculta.

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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