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Alexandre Quintanilha em entrevista a "A Página"

Das guerras da água
a uma escola
que ensine a ser curioso

Alexandre Quintanilha nasceu em Moçambique em 1945 e licenciou-se na Universidade de Joanesburgo em 1968, doutorando-se em 1972. Em 1981 faz a agregação para professor catedrático da Universidade do Porto. Após o doutoramento, emigra para os Estados Unidos da América, estabelecendo-se na Universidade de Berkeley, Califórnia. Entre 1983 e 1990 foi director assistente no Laboratório Nacional Lawrence, secção de Energia e Ambiente, e, entre 1987 e 1990, desempenha o cargo de director do Centro de Estudo de Tecnologia da Biosfera. Entretanto, é membro, nesta altura, de cerca de doze sociedades internacionais de Biofísica, Bíoquímica e Biologia Celular. Foi também investigador da Universidade de Paris XI, na área de Física dos Sólidos. Regressa a Portugal em 1990 e no ano seguinte é nomeado director-coordenador do Instituto de Biologia Molecular e Celular, cargo que actualmente desempenha. Publicou dezenas de artigos em várias revistas científicas de nível mundial, sendo coordenador e autor de vários trabalhos nas áreas da Biologia, Ambiente e Física Aplicada.

P - A conferência mundial do Cairo, realizada em 1998, preconizava a estabilização da população mundial entre os oito e os dez mil milhões de habitantes até ao ano 2050. Pensa que essa meta poderá ser concretizada?

R - Não. Tenho sérias dúvidas e há muita gente que tem dúvidas em relação a isso. Não sou visionário, mas não me parece que seja muito fácil uma população mundial que ronda os seis mil milhões conseguir estacionar à volta dos nove ou dez mil milhões daqui por cinquenta anos. Mas penso que há sinais muito positivos. Há uma série de experiências que estão a ser feitas em vários pontos do globo, principalmente na Índia, na provincia de Kerala, a sul, na Colômbia, na Tailândia, em países da África oriental.
Experiências essencialmente dirigidas para a educação das mulheres, de modo a que elas possam ter o mesmo nível de educação dos homens - na maior parte dos países em vias de desenvolvimento o tempo médio de educação das mulheres é metade em relação aos homens. São experiências a nível regional, que consistem em dar às mulheres o mesmo nível de educação e dar-lhes alguma autonomia financeira, mesmo que pequena.
Nesse âmbito há uma experiência muito curiosa no Bangladesh, em que um banqueiro resolveu emprestar pequenas somas de dinheiro, apenas a mulheres, para que estas pudessem adquirir animais domésticos e garantir a sua subsistência. O que ele descobriu também é que as mulheres pagavam, ao contrário do que acontecia com a maior parte dos homens - não que os homens sejam todos caloteiros...-. Esta experiência de dar alguma estabilidade financeira, educação e acesso a informação, nomeadamente a projectos de planeamento familiar, tem feito com que taxas de natalidade que andavam à volta dos seis, sete ou oito por cento, tenham descido para dois e três por cento.

P - Mas falando a nível global, de que forma será possível contrabalançar o decréscimo da natalidade nos países desenvolvidos e o cresimento explosivo nos países em vias de desenvolvimento?

R - Aquilo que se costumava dizer antigamente é que quando um país se desenvolvia, isto é, que o Produto Nacional Bruto (PNB) aumentava significativamente, era um sinal correlacionado com a diminuição da taxa de natalidade. O que estas experiências têm vindo a demonstrar é que isso é falso. É possível que em países em que o PNB é pequeno haver um decrescimento significativo na taxa de natalidade através das estratégias que já enumerei.
A estrutura etária da população está a alterar-se. Nos países em vias de desenvolvimento essa estrutura forma uma pirâmide, nos países desenvolvidos assemelha-se a um rectângulo. Há quem preveja que nesses países, onde diminuirá a população activa, não venha a haver segurança social ou os serviços de saúde não sejam suficientes. Eu penso que isso tem mais a ver com o facto de estarmos perante uma novidade. Nós ainda não aprendemos a viver numa sociedade em que a distribuição de idades éum rectângulo. Onde será tão possível de coexistir como noutra. Embora com inovação.

P - Como é que o planeta consegue absorver a produção de resíduos domésticos e industriais e de que forma se irá gerir essa "dor de cabeça" num futuro próximo?

R - Essa é uma pergunta que me entusiasma. E levanta duas questões. Por uma lado, a nossa sociedade ainda não sabe comparar riscos. Se por um lado está altamente preocupada em que haja lixos radioactivos em Espanha ao pé do rio Douro, não se preocupa com que haja fábricas de curtumes ao longo das suas margens que despejam metais pesados que são tanto ou mais cancerígenos em relação a produtos radioactivos. E nós não sabemos fazer essas comparações. Em geral, reagimos àquilo que tem maior visibilidade. Há uma falta de metodologia racional ou científica para estabelecer uma comparação.
Mas não sabemos muito o que fazer aos resíduos. Se por uma lado a grande maioria dos portugueses aspira a ter um nível de vida mais elevado, ter carros maiores, casas maiores, ter objectos, consumir mais, por outro quem somos nós para moralizar essa atitude e dizer-lhes que comprem carros que gastem menos gasolina, que produzam menos CO2, que utilizem menos material plástico - ir ao supermercado com uma cesta, por exemplo. Se eu fizer isso as pessoas acham que eu sou um "verde". Antigamente chamava-se a essas pessoas comunistas, agora chama-se-lhes idealistas.
Por outro lado podemos voltar á questão das experiências, interessantíssimas, de redução de resíduos, que decorrem por esse mundo fora e das quais não sabemos nada. A água, por exemplo, é um recurso que valorizamos cada vez mais. E há cada vez mais discussões a nível económico e político em relação à água. Nós já temos conflitos com Espanha e até nem somos um país com falta de água. Em Portugal gasta-se em média 1100 metros cúbicos de água. A Suiça, por exemplo, gasta metade, Israel muito menos e a Jordânia situa-se nos 80 metros cúbicos. Estes são países com falta de água e conseguem viver assim.
Deixe-me contar, por exemplo, uma ou duas experiências em relação à conservação da água.
A poderosa IBM fez uma experiência na Califórnia em que resolveu poupar na água que utilizava para produção industrial, investindo de forma a que os processos industriais que utilizava passassem a usar apenas dez por cento relativamente ao que faziam no passado. E conseguiu fazê-lo reavendo a verba aplicada em quatro meses e meio. Não são anos, são meses. Mas quem é que sabe isto? Será que os nosssos jornais alguma vez falaram nesta experiência ou alguém discutiu isto em vez de debater Foz Côa? Ou se no Alentejo faz sentido utilizar, a meio do verão, máquinas de aspersão em que noventa por cento da água irrigada nem sequer toca o chão? Não faz sentido.
Devíamos fomentar uma cultura de aprendizagem em relação a experiências de outros países. Felizmente que em certas áreas já o começamos a fazer, como por exemplo a utilização de energia éolica. Mas isso representa uma margem ínfima. Mas em vez disso queremos construir barragens maiores, mais centrais eléctricas, em vez de falarmos da conservação de energia. A Califórnia prevê que, apesar do crescimento populacional, um dos maiores dos Estados Unidos, até ao ano 2030 vão conseguir fechar metade das centrais de produção de energia eléctrica. E a população tende a duplicar até essa altura. E porquê? Porque investiram na conservação.
Acho que em relação à questão dos resíduos, que despoletou este comentário, há imensas coisas que podíamos fazer em relação à produção de resíduos. Não o fazemos e depois ninguèm quer ter uma lixeira ou uma estação de tratamento à beira de casa. Os países ricos exportam-nos para os países africanos, porque eles precisam de divisas estrangeiras.
Em Portugal estamos a discutir permanentemente a localização, mas em algum sítio tem de ser. Por isso devíamos era discutir de uma forma inteligente a poupança de recursos. Mas se alguém quiser saber de que forma pode fazer poupança de energia na sua casa. Há uma ou duas empresas que se interessam por isso e mais nada. É escandaloso.
A instalação e janelas duplas, por exemplo, é um investimento caro, mas que pode ser recuperado em cinco ou seis anos. A instalação de lâmpadas fluorescentes. Há oito anos que estou cá e enquanto toda a gente se queixa das elevadas contas de electricidade, a minha baixou ou está constante.

P - Acha que as chamadas "guerras da água" são domínio da ficção científica ou são perigosamente mais reais do que parecem?

R - Na minha opinião, a água vai ser um dos principais factores de instabilidade no mundo. Tenho a certeza absoluta. Aliás, já o é. As guerras entre o Iraque e o Irão têm a ver com o acesso às águas do Tigres e do Eufrates. O problema do Curdistão também está relacionado com a água que entra no Iraque vinda da Turquia, porque ambos os países têm interesses particulares.Os curdos servem como bode expiatóra para as confrontações entre eles. E quando começar a haver alteração climatéricas em certas regiões do globo, como na Austrália... até aí é imprevisível onde esses problemas irão surgir.

P - É possível encarar o uso de energias alternativas a curto ou médio prazo?

R - Penso que sim. Aliás, há estatísticas muito interessantes sobre isso - tenho pena de não tê-las comigo aqui. Enquanto que o consumo de energia fóssil, as chamadas energias convencionais, continua a crescer à média de 1,5 por cento ao ano, a venda de células foto-voltaicas está a crescer à volta de 30 a 40 por cento no mesmo período de tempo. Nesta altura, o preço da produção de 1 KW de energia eléctrica por células fotovoltaicas, como os painéis solares, é quase tão barato como que por energia fóssil. E era isso que todos estavam à espera. A energia éolica está também a ter um desenvolvimento da mesma ordem. As pessoas já se aperceberam que isto são alternativas possíveis e estão a fazer-se muitos investimentos nesse domínio.
Comparada com os riscos que a energia nuclear representa é muito mais barata. Além disso, o investimento numa central de produção de energia eléctrica através de energia o investimento é tão grande por causa da segurança, que o custo é mais elevado.
Em Long Island, próximo de Nova York, construíram uma central nuclear e a população decidiu que não a queria. Mas, vinte anos depois, ainda hoje está a pagar a conta de dois mil milhões de dólares. Isto tem a ver com a sociedade de cada país.Tenho uma casa em Nova York onde pago o dobro do preço da electricidade que pagaria na Califórnia, mas também me opus à sua construção.

P - A energia nuclear é uma alternativa razoável em Portugal?

R - Penso que não é necessário. Se apostássemos na tal conservação, em vez de construirmos mais centrais eléctricas, se calhar podíamos fechar algumas. Mas eu não posso dizer isto, senão a senhora ministra do Ambiente ou o ministério da Indústria acha que isto é horrível. Ainda estamos na fase de dizer que o que Portugal precisa é de mais energia e ninguém fala em conservação.

P - Referiu numa conferência, em Matosinhos, que as relações entre capital e trabalho nunca tiveram em conta os custos ambientais. De que forma será possível, actualmente, equilibrar esse triângulo?

R - Tem a muito a ver com o conceito de crescimento sustentável. O crescimento sustentável tem de contar com todas as partes da equação. Não podemos assumir que o ambiente absorve todo o lixo que produzimos. E quando nós verificarmso que isso é uma realidade, qualquer economista tem de pensar nas componentes da equação. O factor existe, e se nos esquecemos dele ele aparece mais tarde e é mais caro. Há um livro extraordinário que saiu há pouco tempo, produzido pelos presidentes de vários bancos centrais, e pelo próprio Banco Mundial, em que começaram finalmente a defender a ideia de um cresciemnto sustentado e não um crescimento a todo o custo.
Em vez de estarmos a pensar nos recursos que ainda temos disponíveis e de que forma devemos usá-los para o crecimento do nível de vida dos nossos filhos e dos netos, pensar igualmente nos riscos que corremos e o preço que teremos de pagar mais tarde. É um problema que nunca pode deixar de ser considerado seriamente.

P - Os países em vias de desenvolvimento acusam o mundo ocidental de estar a limitar o seu crescimento económico como consequência de problemas criados por eles próprios. Que comentário lhe merece?

R - Têm toda a razão. E ou fazemos de conta que eles não são tomados em consideração ou apercebemo-nos que o mundo é cada vez mais pequeno. Se a China continuar a produzir os actuais níveis de poluição, por exemplo, as alterações climáticas previstas ocorrerão, muito provavelmente, mais cedo do que o esperado. Ou o mundo se apercebe que tem de trabalhar em conjunto para que estas soluções sejam encontradas a curto prazo ou continuará a selva do costume.
No ano passado encerraram 999 centrais de produção de electricidade na China porque os custos com a saúde pública eram superiores ao rendimento obtido. Uma das razões deve-se ao tipo de carvão ali utilizado ser pouco energético e extremamente poluente. A cidade de Los Angeles está a gastar cerca de dois mil milhões de dólares anuais em doenças pulmonares. E é também por essa razão que os autarcas estão a exigir que, até ao ano 2010, haja uma significativa percentagem de carros eléctricos. E se todos nós pagamos seguros, porque não descontarmos um bocadinho mais para um seguro global?

P - Porquê então tanta inércia?

R - Eu costumo dizer que existem três tipos de pessoas: os que não se interessam por estes assuntos, que espero seja uma minoria, os que nunca têm certezas e preferem esperar para ver e os que fazem propostas irrealistas, afirmando que o problema é a má distribuição. É verdade. Mas se pensarmos no caso dos alimentos, por exemplo, passavamos todos a ser vegetarianos. E eu duvido que a nossa sociedade, nomeadamente a portuguesa que eu conheço melhor, tivesse vontade de passar a vegetariana.
Outro dos problemas é o facto de os problemas a longo prazo não elegerem políticos. Qual é o político que vai exigir ao contribuinte o pagamento de uma taxa para questões que tenham a ver com o desenvolvimento sustentado? Será que ele seria eleito?

P- Na Alemanha, SPD e Verdes conseguiram chegar a um entendimento que inclui o princípio de pagamento de taxas ecológicas...

R - Finalmente! Tivemos de esperar até 1998. Mas imagina isso a acontecer em Portugal? Eu não. Já há uma grande consciencialização em relação a esses problemas e felizmente são os jovens que se mexem e que começam a criar sentimentos de culpa nos mais velhos. Conheço muitos miúdos que criticam os pais por fumar, porque suja, porque não separam o vidro...

P - É, então, um problema político?

R- Em grande parte. Mas é mais triste do que isso. Com o aumento da informação e com a discussão pública destes assuntos, até seria possível movimentar os cidadãos. Acho que é mais uma questão de ignorância e isso é que me assusta. Há uma grande ignorância em relação às experiências feitas em pequenas comunidades pelo mundo fora que podiam ser aplicadas noutros lugares. Não se conhece, não se sabe, não há informação sobre isso.
Houve uma grande controvérsia na conferência do Cairo, em 1998, porque o único assunto que fez primeiras páginas dos jornais foi a discussão entre o papa e o vice-presidente dos EUA, Al Gore, sobre se o aborto seria uma forma de controlar a natalidade. Ora isso nunca foi uma ideia apresentada como um processo de controlo da natalidade, mas dita assim tinha um valor mediático enorme. E as pessoas tiveram de aturar esta discussão quando havia dezenas de comunicações interessantes das quais nunca se tomou conhecimento. Temos muito mais jeito para fazer de conta do que para enfrentar os problemas. Gostamos de fazer encontros com nomes muito sonantes, mas dos quais ficamos a saber pouco. A experiência do banqueiro do Bangladesh é uma experiência fabulosa, com consequências no dia-a-dia destas mulheres que as pessoas estão longe de imaginar.

P- Que papel pode ter a educação?

R - Eu ensino física a alunos de medicina, entre outros. Achava que era muito interessante no início das minhas aulas falar de energia e fazer uma conta muito simples. Qual a quantidade de energia solar que é captada na terra e qual a percentagem que é convertida. A partir daí fazer as contas de qual a população máxima que o planeta pode comportar, imaginando a quantidade de calorias consumidas diariamente por cada indíviduo tendo em conta aquela massa de energia. Imaginei que tivesse mais interesse do que uma equação sobre a força centrípeda. No final da aula um grupo de alunos perguntou-me: Isso é muito interresante, mas é mesmo para exame? Não imagina a minha decepção. Pensei se realmente valia a pena estar a incomodar-me.
O desenvolvimento sustentado é uma das áreas que claramente exige uma educação interdisciplinar e uma interligação dos saberes. Mas os nossos sistemas de ensino não estão habituados a isso e se alguém tentar somos criticados pelas pessoas saírem da escola a saberem pouco de muitas coisas. A minha resposta é que o ensino não foi feito para produzir pessoas úteis, mas pessoas curiosas.

entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Alexandre Quintanilha
Escola Superior de Biomédicas, Univ. do Porto
Alexandre Quintanilha
Escola Superior de Biomédicas, Univ. do Porto

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