Radicada na crença na perfectibilidade humana, a actividade dos educadores caracteriza-se por uma intervenção intencional no processo de desenvolvimento de outras pessoas. Esta intervenção, porque profissional, assenta num saber técnico e cientifico continuamente enriquecido num diálogo reflexivo com as situações concretas, sempre problemáticas. À especificidade dos contextos e à multidimensionalidade do humano, há que juntar a consciência da fragilidade do futuro, enquanto tempo de referência de qualquer projecto educativo. O trabalho dos educadores desenvolve-se por isso num espaço relacional inevitavelmente marcado pela complexidade, pela incerteza e por uma enorme responsabilidade ética. Factores que sabemos inerentes a toda a relação interpessoal mas que ganham outra acuidade em educação. Daí que ao contrário do que nos é sugerido pelos modelos de ensino de carácter tecnológico, não seja possível reduzir a actividade docente a uma actividade meramente técnica. Os educadores têm por tarefa profissional potenciar o desenvolvimento das condições de autonomia dos educandos. Este trabalho pode passar por múltiplas situações, desde a transmissão de conhecimentos, à resolução de problemas, ao confronto de ideias, a actividades de leitura e escrita ou à concretização de experiências e projectos. Mas, do ponto de vista antropológico e educativo, qualquer destas situações pedagógicas perderá sentido e eficácia se não for apoiada numa prática de relação e de comunicação. O processo de ensino e de aprendizagem que permite aos educandos a progressiva superação de si mesmos, exige o encontro e a cumplicidade entre quem ensina e é ensinado. Importa no entanto salientar que a relação que aproxima educador e educandos distingue-se de qualquer outra, como a de amizade por exemplo, na medida em que obedece a uma intencionalidade pedagógica e se inscreve num projecto de ordem institucional. Ignorar ou esquecer este facto pode conduzir a derivas perigosas em relação às finalidades que presidem ao acto educativo. No trabalho do educador entram em jogo todos os traços da sua personalidade, os seus afectos, os seus temores e os seus sonhos. E importa que assim seja, desde que não se misturem os planos. Isto porque o educador não pode cair na tentação de vir a cobrar as horas perdidas em cuidados que a ternura e o amor ditaram, como o amante traído ou a mãe que vê a filha crescer e afastar-se de casa. Lembro a este propósito a canção desnaturada de Chico Buarque em que, perante a impossibilidade de reverter o tempo, a mãe se dirige à sua curuminha lamentando as noites em claro em que não ignorou o seu choro, não negou o seu colo e não recusou o seu leite. O educador terá que resistir a este tipo de cobrança, mesmo que se sinta traído, mal compreendido e mal amado. Mesmo que o seu esforço depare com a indiferença e o esquecimento. Isto sem prejuízo do reconhecimento social que lhe é devido enquanto profissional. Esse tipo de reconhecimento não pode estar nunca em causa mas não pode também ser cobrado ao nível da relação. Conforme, aliás, tem sido evidenciado pelo discurso público dos professores e pelas preocupações profissionais tantas vezes traduzidas neste jornal. Por outro lado, há que ter em conta que o espaço relacional que suporta o acto educativo não se esgota na relação desenvolvida entre educador e educandos. Como foi dito, esta relação inscreve-se num projecto e remete para um contexto de referência bastante mais vasto. A educação vive da mediação entre individual e colectivo, entre antigo e novo e de uma infinidade de outras mediações possíveis. A especificidade do trabalho do educador reside precisamente neste poder para criar e alimentar os espaços de mediação em que se encontram e se confrontam diferentes modos de ser e de fazer, diferentes memórias, interesses e desejos. A relação interpessoal surge-nos como condição de possibilidade desse espaço de mediação. E, quando temos como referência esse lugar humano concreto que é a escola, convém sublinhar o papel que pode ser desempenhado pelo Projecto Educativo enquanto elemento configurador de um quadro institucional mais ou menos propiciador dos diferentes níveis de mediação que possam existir na organização escola. Na escola, apesar das mudanças em curso, imperam ainda os rituais de submissão, de vigilância e de controlo. É urgente, pois, alargar os espaços de relação e de diálogo. O diálogo corresponde de facto a uma forma privilegiada de encontro e é vital no processo educativo. Até porque no mundo incerto em que vivemos, a verdade precisa das palavras ditas e contraditas em sociedade com o outro. Só assim é possível contrariar os riscos de endoutrinamento que sempre pairam sobre as práticas educativas. Como alerta Reboul, o endoutrinamento é a perversão do ensino na media um ensino verdadeiro tem por fim, seja qual for o seu conteúdo, formar adultos: seres capazes de assumir a sua responsabilidade e os seus compromissos, de pensar por si próprios, de respeitar os factos mesmo quando estes contradizem os seus desejos e de escutar os outros mesmos quando eles nos contradizem. A tentativa de procurar influenciar o outro e o esforço desenvolvido nesse sentido são inerentes ao acto de educar. Mas esta tentativa não pode ser concretizada a qualquer o custo. Uma das dificuldades que tornam a actividade docente uma actividade complexa e ao mesmo tempo fascinante, reside precisamente na necessidade de gerir esse subtil equilíbrio entre a intenção pedagógica e o reconhecimento dos limites éticos que são inerentes a uma relação interpessoal. Tomando como referência as palavras de Reboul, não podemos esquecer que cabe ao educador provocar a possibilidade de resposta de outros sujeitos. Trata-se, pois, de aprender a lidar com essa resposta, aprendendo a aceitar aquilo que Meirieu designa como o negativo da educabilidade. Os educandos devem ser reconhecidos enquanto sujeitos, independentemente da sua aparência física, dos seus valores ou da avaliação que possa ser feita sobre a sua perfomance académica. Não pretendemos, todavia, colocar aqui em causa a autoridade pedagógica do professor, o seu direito de ensinar. Não se trata, evidentemente, de tolerar qualquer comportamento dos educandos. Trata-se sim do reconhecimento da dimensão ética inerente à educação, do respeito que devemos ao outro enquanto outro. Para além de que não podermos deixar de ter presente que o processo de aprendizagem é muitas vezes lento, conflitual e tacteante. Neste sentido e citando de novo Reboul, devemos tolerar o erro , não por ser a verdade do aluno, mas por corresponder à sua própria maneira de chegar ao verdadeiro. Aliás o termo tolerância sofre de alguma ambiguidade, como sabemos. Aquilo que designamos por tolerância esconde muitas vezes uma atitude de mera indiferença. E esta é incompatível com a lógica educativa. Na aventura educativa, como em qualquer outra aventura humana, caminhamos sem garantias de um porto seguro onde abrigar certezas ou convicções. Mas se nada está garantido à partida e tudo parece possível, isso não significa que tudo valha a pena. Mais do que nunca importa tomar posição e fazer escolhas. É disso que se trata quando falamos em progressiva construção de autonomia. Na possibilidade de todos os sujeitos compreenderem a sua situação, decidirem conscientemente sobre a sua vida e o seu futuro e agirem em consequência com as decisões tomadas. E isto tendo sempre em consideração que não estamos sozinhos no mundo. A escola enquanto espaço relacional por excelência deve precisamente preparar para a vida social. Para as exigências decorrentes da necessidade do viver em comum. Isabel Baptista Referências bibliográficas
Meirieu, P. (1993). Le Choix d`éduquer. Paris. PUF. Reboul, O (1977) L`endoctrinement. Paris. PUF.
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