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Um retrato de Montalegre - o interior em tempo de reínicio de ano escolar

o interior em tempo de reínicio de ano escolar

A paisagem é magnífica, desoladora, praticamente intacta, recortada por campos cultivados de vermelho, amarelo, castanho e verde, por oposição ao cinzento triste dos penedos. Entrando pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês o azul das três albufeiras - Salamonde, Venda Nova e Alto Rabagão -, que acompanham a estrada principal até à sede do concelho, é outra das cores dominantes. Mas Montalegre é um concelho escondido. Esquecido. As agendas ministeriais passam-lhe ao lado. O início do ano lectivo foi um exemplo disso. Treze escolas do 1º ciclo fecharem as suas portas não é propriamente um caso de sucesso. E afinal, que peso político têm quinze mil habitantes?
As condições geográficas e climatéricas geraram, desde há séculos, uma organização comunitária baseada na entre-ajuda como forma de subsistência. Ainda hoje, essas caraterísticas culturais e etnográficas, talvez únicas no país, marcam o dia-a-dia de muitas aldeias. O boi do povo, o forno do povo, o moinho, o rego da rega ou as vezeiras são o exemplo de algumas dessas formas solidárias de relacionamento. Para quem não sabe, a vezeira consiste no pastoreio conjunto do rebanho da aldeia. Os dias distribuem-se de acordo com o número de animais de cada proprietário. Cinco cabeças correspondem habitualmente a um dia no campo. O rego da rega obedece a um sistema semelhante, sendo a água partilhada em dias diferentes por todos os habitantes da aldeia no trabalho do campo.
O mesmo campo que hoje em dia está a ser deixado ao abandono. Já não há muitos agricultores numa terra em que a desertificação e o envelhecimento avançam como uma sombra. A história já é conhecida: os velhos vão ficando mais velhos e os mais novos preferem outras paragens. Se não é no estrangeiro, é nas grandes cidades.
Sentado na paragem de camionetas, António Rios, 21 anos, aguarda o transporte para Solveira, uma aldeia a poucos quilómetros de Vilar de Perdizes. Quarenta minutos de viagem para vinte quilómetros de estrada. Alto, cabelo alourado e face austera, diz que em Montalegre "não há muito que fazer". A conversa não é fácil. Falar com um estranho não é fácil. Ir ao café com os amigos ou ver televisão são os passatempos possíveis. Não concluiu o ensino básico. "Fui até ao segundo ano do ciclo. Depois não quis estudar mais". Ao longo destes últimos anos foi ajudando os pais na lavoura porque não conseguiu emprego em lado nenhum. De uma coisa tem a certeza: apesar do apego à terra que o viu nascer, não é por ali que pretende ficar. Tem perspectivas de trabalhar na Suiça. "Lá ganha-se bem e não trabalhamos tão duro como aqui".
"Infelizmente, as pessoas parece que têm medo de se sujar". O comentário parte do presidente do conselho directivo da escola secundária de Montalegre, Manuel Baptista, que conta a história de uns engenheiros nórdicos recentemente deslocados a Montalegre para reparar umas máquinas agrícolas. "Quando os técnicos portugueses chegaram ao local, de fato e gravata, não queriam acreditar que os homens debaixo dos tratores e sujos de óleo fossem os seus congéneres", diz com ar irónico. "É preciso revolucionar as mentalidades".
Um dos passos para essa mudança passa por adaptar os programas curriculares à realidade local. "Uma vez que a actividade económica quase não tem expressão, o ensino devia estar mais vocacionado para os estudos gerais, porque o objectivo da educação é sobretudo a formação de atitudes. A ideia de sucesso não pode continuar a ser medida em função da transição de ano escolar e concretizar-se por um emprego atrás de uma secretária", diz Baptista..
Fomos encontrá-lo em pleno início do ano escolar, atarefado entre horários e preparativos de última hora. "Há muito trabalho a fazer, pelo menos se queremos que ele comece bem". E trabalhar parece mesmo ser a única forma de aquecer o corpo, numa escola onde as temperaturas podem atingir valores negativos durante o inverno e o aquecimento está longe de ser eficaz. A Coordenação da Área Educativa de Vila Real garantiu ao conselho directivo que este ano a escola seria equipada com aquecimento a gás. "Vamos ter uma reunião em breve e dizer-lhes que falharam na promessa. Faltam poucos dias para o início do ano lectivo e até agora nada". O sucesso também passa por esses pequenos pormenores. "E para isso temos de criar condições para que as pessoas se sintam acolhidas", afirma. Mas na cantina, ao menos, "come-se bem", assegura.
Outro dos problemas que persiste desde há anos é a fixação do pessoal docente no concelho. A maior parte dos educadores que ali chegam são destacados. Chegam num ano e partem no seguinte. Na pior das hipóteses, não chegam sequer a assentar. Dos 61 professores apenas cinco são efectivos naturais da região. Manuel Baptista é um deles.
"Passam cá pouco tempo e mal conhecem a realidade local". E para se resolver os problemas, explica, "é preciso conhecê-los, compreender a alma das pessoas, comer à mesma mesa com elas". Também aqui a revolta contida dá lugar à compreensão. "De certa forma é natural. Os interesses deles não estão cá, a família está longe. Nunca conseguem ter o mesmo rendimento de alguém que conheça o meio ou esteja ambientado a ele".
A razão para este isolamento é só uma: "sermos poucos em relação aos grandes centros urbanos e, consequentemente, termos pouco poder de reivindicação", conclui Manuel Baptista.
A comunicação social da região não é muito diversificada e está invariavelmente ligada a meios influentes como partidos políticos ou a igreja. O "Correio do Planalto" é tido como socialista, o "Povo de Barroso" tem tendência social-democrata e o "Barroso: Terras e Gentes" pertence à igreja. O conhecido padre Fontes dirige o "Notícias do Barroso", aquele que é tido como o mais independente dos meios de comunicação escritos. Para além da imprensa, existe ainda a Rádio Montalegre. Uma falta de peso político e económico que se reflete, por exemplo, na falta de um cinema, de um teatro ou de qualquer sala de espectáculos na vila de Montalegre. O cinema vai às escolas duas vezes por ano.
Apesar da falta de espaços, a autarquia tem apostado na exibição de peças de teatro na vila e em várias aldeias. Por estranho que pareça, "é nas pequenas localidades que os espectáculos obtêm mais sucesso", afirma Irene Esteves é a chefe da Divisão Sócio Cultural da Câmara Municipal de Montalegre.
À falta de uma companhia residente, é o Teatro da Filandorra, de Vila Real, e pequenas companhias convidadas, quem se encarrega de itinerar a arte. A teatralização de tradição oral tem raízes culturais em Montalegre. O secular "Auto da Paixão", representado em Vilar de Perdizes, é o expoente de uma série de representações populares que se realizam também na Páscoa e no Carnaval. Mas a desertificação vai apagando essas memórias.
Irene Esteves nasceu numa aldeia próxima da sede do concelho, onde oitenta por cento da população tem mais de setenta anos. Entre os 15 e os 30 anos há apenas um rapaz e quatro raparigas. "Daqui por dez anos a maior parte das nossas aldeias irão ficar desertas".
Reflexo disso são as treze escolas do 1º ciclo a encerrar portas este ano. Cerca de oitenta por cento das 86 escolas do concelho funcionam com menos de 10 alunos. "Os professores sentem-se desmotivados quando são colocados no meio da Serra do Gerês com três alunos. E estes chegam a ter três e quatro professores por ano". A câmara não tem verbas para suportar todas as despesas com a educação, refere Irene Esteves. "Só os transportes escolares custam quase seiscentos contos por dia".
Servindo 36 freguesias e 136 aldeias, o parque escolar é constituído por cinco escolas. Uma preparatória e uma secundária na vila de Montalegre, duas escolas básicas de 2º e 3º ciclos na Misarela e no Baixo Barroso e uma escola profissional nas Minas da Borralha.
"Este ano vamos ter uma escola de 1º ciclo a funcionar nas mesmas instalações da EB 2, 3 de Montalegre", explica. Uma forma de racionalizar custos, proporcionar melhores condições e combater o isolamento. "Seria melhor apostar em agrupamentos de escolas para o 1º ciclo, dotadas de melhores instalações e com actividades de apoio. Ao mesmo tempo, é uma forma de combater o isolamento social das crianças que vêm das aldeias limítrofes". Para já não passa de um projecto, mas a autarca acredita que essa será, a médio prazo, a melhor solução para o concelho. Converter os edifícios escolares abandonados em centros comunitários para a terceira idade, em parceria com a segurança social, é outra das ideias.
Uma forma de promover o emprego que tanto escasseia na região. Não estamos interessados em indústrias poluidoras. "Queremos investir no turismo natural e na agricultura de qualidade. Actualmente, existem diversos produtos que estão classificados com um selo de denominação de origem controlada, como a carne de bovino, o cabrito, o presunto, o pão de centeio e o mel, mas ainda muito subaproveitados". As pessoas mais novas, lamenta Irene Esteves, "não apostam nestas oportunidades". "Vêm os conterrâneos a emigrar com sucesso e seguem-lhes os passos".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 73
Ano 7, Outubro 1998

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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