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Em tempo de cantata de Oceanos - Como educar depois de Auschwitz ?

Na manhã desse dia Joan-Carles Mèlich colocava-nos perante uma questão tão inquietante quanto tangível: É possível pensar a educação, da mesma maneira, antes e depois do holocausto nazi ?

Confesso que nunca até esse momento, pelo menos numa conferência internacional, tinha sido confrontado de uma forma tão crua e dura com a necessidade de se valorizar a dimensão ética de um acto educativo, no âmbito da discussão e da reflexão sobre o sentido e a natureza dos projectos de educação nas sociedades contemporâneas do mundo no pós-guerra.

Foi, pois, com a pergunta: 'Como educar depois de Auschwitz ?' a perturbar-me o dia que recebi o telefonema da Ariana. A Armanda, nossa amiga e presidente do Conselho Directivo da Escola Preparatória de Vila Praia de Âncora, tinha-a convencido a assistir à Cantata dos Oceanos que os Grupos Vocais e Instrumentais da sua escola iriam oferecer nessa noite no Pavilhão Municipal dessa vila minhota. Metemo-nos, por isso, à estrada.

Já conhecíamos o grupo através da edição de dois CD's, um dedicado à música europeia da época dos descobrimentos e outro que intitulado 'À descoberta das Américas' constituía também um empreendimento de qualidade quer do ponto de vista musical quer do ponto de vista pedagógico. Conhecíamos igualmente as condições de trabalho daquela gente, bem como a sua dedicação e o seu profissionalismo insuperáveis. Esperávamos, por isso, assistir a um desempenho que estivesse à altura dos pergaminhos do grupo.

O que nos foi dado testemunhar superou, todavia, todas as expectativas que fomos alimentando durante a viagem. À nossa frente, num palco imenso que um cenário arrojado contribuiu para transformar num espaço estético congruente, cerca de cento e cinquenta crianças do 1º, 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico cantaram, tocaram, representaram e dançaram, evidenciando, através de uma constelação de quarenta e quatro canções provenientes dos cinco cantos da Terra, como os oceanos nos podem unir numa renovada e diferente Pangeia. Ensinaram-nos a conjugar os verbos que permitem irmanar um 'Funiculi Funicula' italiano com um ' Taa Taa Tee' do Ghana, deixaram-nos maravilhados com o ritmo e a musicalidade do 'Pupu' havaiano ou do velho 'Guantanamera' cubano. Lembraram-nos, pelo silêncio, Timor e extasiaram-nos com um guarda-roupa e uma caracterização que envolveu, num esforço conjunto, professores, funcionários da escola e encarregadas de educação.

No presente, e por razões várias, actividades desta natureza entusiasmam-me pouco, sobretudo se se tende a sacrificar a qualidade pedagógica dos projectos à visibilidade final do produto a que temos acesso. Pergunto-me mesmo, perante algumas produções a que tenho vindo a assistir, que oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento é que se proporcionaram às crianças e aos adolescentes que nelas estiveram envolvidos. Pergunto-me para que serviu tanto tempo e energia dispendidos, pergunto-me qual o sentido educativo desses projectos e que implicações futuras é que estes poderão vir a ter sobre a vida das pessoas e das organizações.

Por isso, a Cantata dos Oceanos dos Grupos Vocais e Instrumentais da Escola Preparatória de Vila Praia de Âncora constituiu, para além do espectáculo em si, uma oportunidade de assistir a uma actividade, também a este nível, exemplar. A música, a expressão e o movimento foram, indubitavelmente, os seus veículos privilegiados de afirmação que eu entendi como um pretexto, entre outros pretextos possíveis, para concretizar uma intervenção educativa de natureza mais abrangente e plural. Sei por experiência própria que não seria possível construir um espectáculo daquele nível, se todos os que nele participaram não tivessem aprendido, em primeiro lugar, o sentido mais genuíno do que usualmente designamos por participação, solidariedade ou cooperação. Um projecto como esse não se explica apenas pela existência de uma direcção musical eficaz e criativa. Para o realizar foi necessário, certamente, ter de assumir que tal projecto deveria constituir um momento e um espaço de formação, o que, neste caso, significa que se valorizou tanto a qualidade da dinâmica do processo de animação musical e pedagógica implementado como a estrutura e o conteúdo desse mesmo projecto, entendido aqui como um factor de mediação fundamental, já que foi através de uma temática mobilizadora e significativa que aquele processo de animação pôde ser concretizado. Aqueles miúdos, aqueles professores, aqueles funcionários, aqueles encarregados de educação, quem sabe se aqueles espectadores, tiveram, pelo menos, a oportunidade de aprender (porque só a oportunidade de aprender é que pode ser assegurada) que eu sou eu, quando eu souber reconhecer e apreciar todos os tu que há em mim.

E foi assim, por um inexplicável acaso em que por vezes a vida é fértil, que numa noite, em Maio, pude acalentar alguma esperança face à atormentada questão que um filósofo catalão me colocara na manhã desse mesmo dia: Como educar depois de Auschwitz ?

Em Vila Praia de Âncora confrontei-me com uma resposta, a resposta que aquela escola soube e tem vindo a construir, de um modo perseverante, desde há dez anos a esta parte. Sei, felizmente, que noutras escolas, noutros espaços educativos formais e não-formais, outros têm tentado, com sucesso ou mesmo sem sucesso, com mais ou menos dificuldades e equívocos, construir projectos que tendem a superar dicotomias decadentes e bloqueadoras, rivalidades que algum cartesianismo pedagógico foi cimentando e que continuam a perdurar nos nossos discursos e nos nossos actos. Áreas curriculares informativo-instrumentais versus áreas curriculares formativas ? Porquê ? Experiências de aprendizagem cognitiva versus experiências de ordem afectivo-emocional ? Com que justificação e fundamento ? Projectos versus programas ? Educação técnica versus educação estética versus educação ética ?

Como educar depois de Auchwitz ? Através de uma cantata ? Certamente. Através de um algoritmo, da escrita de um texto, talvez mesmo através de exercícios chatos e aparentemente sem sentido, da Biologia, da História, do que quer que seja que, para lá de todas as retóricas possíveis e imagináveis, assuma de facto a alteridade como um eixo fundamental dos projectos de educação contemporâneos, a partir da qual se reabilite o acto de educar, prioritariamente, como um jogo relacional que se vai tecendo em torno da partilha de uma rede de significações que seja capaz de alimentar e legitimar este jogo, o que permitirá, em última análise, conferir uma outra credibilidade e uma outra utilidade às intervenções educativas nas sociedades em que vivemos.

Rui Trindade


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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