Página  >  Edições  >  N.º 71  >  A construção da Autonomia

A construção da Autonomia

A representação técnico-didáctica da formação, que surgiu com grande força no campo educativo a partir dos anos oitenta, anda associada, curiosamente, a um processo de autonomização da formação profissional dos professores relativamente à intervenção do Estado, reflectindo assim, uma tendência sócio-política mais vasta que dá pelo nome de libertação da sociedade civil. Sem nos imiscuirmos nos meandros mais complexos do significado geral dessa tendência, podemos, todavia, caracterizá-la como a expressão da emergência e gradual consolidação do princípio do mercado na estruturação das relações sociais em detrimento do princípio do Estado, que sustentava o velho isomorfismo entre poder e saber a que se fez referência no último número de A Página.
Se, dentro desse paradigma, o que conferia legitimidade ao saber profissional era a sua conformidade com as práticas institucionais dominantes, aferidas pela universalidade das normas que traduziam uma certa ideia de bem comum ñ por exemplo, o direito à igualdade de oportunidades, que exigia um comportamento profissional marcado pela equidistância relativamente aos destinatários desse bem comum ñ o que agora dá legitimidade ao saber, na óptica do princípio do mercado, é a sua conformidade com os interesses dos utentes, ou, para sermos mais exactos segundo a lógica em uso, dos clientes.
O processo de formação que daí deriva inicia um deslize da referência do professor 'funcionário público' para a do professor 'técnico', isto é, detentor de competências capazes de resolver problemas à medida da diversidade dos públicos que acedem ao sistema de ensino, transformado em mercado. Esse deslize é, obviamente, acompanhado duma transformação dos saberes que vão gradualmente perdendo a sua referência a um valor de uso, constitutivo duma identidade pessoal, social e profissional que se reconhece neles e por eles, em favor de um valor de troca, cujo sentido fica dependente das oportunidades e dos clientes, obrigando a que a questão da identidade fique, ela própria, dependente do reconhecimento desses saberes como valor de troca.
Foi nesta lógica que apostou o movimento da profissionalização do ensino e da nova socialização dos professores, assim como nela vem apostando a lógica da formação contínua. Se prestarmos alguma atenção ao fenómeno, o que está subjacente a este movimento é a ruptura entre educação e formação ou, se quisermos, um novo conceito de educação onde o que se torna dominante, como factor de estruturação social, é a ideia de educação reduzida à sua dimensão técnica, isto é, a uma forma de comportamento social determinado por relações instrumentais, entendendo-se por relações instrumentais tanto as que derivam da utilização das pessoas como meios, como aquelas relações que se justificam na base da argumentação técnica. É, aliás, esta orientação que inspira a nova semântica educativa que, no quotidiano, consagrou quase em exclusivo o uso do termo 'formação' sem adjectivações, remetendo para o limbo dos arcaísmos pedagógicos expressões como 'Educação permanente', assim como é ela que justifica e garante toda a ortodoxia bem pensante ao chavão dos 'recursos humanos', diferenciados dos 'recursos materiais' apenas por exigência da especificidade da tecnologia de gestão aplicável.
Fica, então, na penumbra neste painel de transformações entre a profissionalização pelo Estado e a profissionalização pelo mercado, a questão da construção da autonomia profissional dos professores. Como é fácil de antecipar toda a questão do 'entre' é uma questão complexa e nada confortável. Veremos.

Manuel Matos


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo