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O 'Mundial'

Lá se foi o 'Penta'! Chora o Brasil! Nem macumba lhe valeu.
Cá está o 'Primeiro'! Banham o Troféu dourado os beijos com lágrimas de triunfo dos franceses. Cantou alto o galo!
Em tempo de férias, que não significa alheamento, mas espaço para serenamente fazer exercícios de avaliação externa e interna (por que não?), por exemplo, entre um banho de mar e um banho de sol, acerca do tema ligeiro do futebol, inserido na questão profunda das relações humanas.
Este mundial leva-nos a pensar no sentir mundial que vai para além de resultados, de jogos no terreno, de jogos de bastidores, de militâncias saudáveis, de aguerridas manifestações patológicas de cariz racista, de cumplicidades perigosas, de falsas solidariedades.
Ouviram-se comentários, no mínimo, curiosos.
'A força de África transportada pela Nigéria' Que África? Que modelo? Um país que só desperta força pela força que exerce.
'Na equipa holandesa é que se vê bem o retrato da multiculturalidade'. Por haver rostos brancos e cabelos loiros misturados com faces pretas e caracóis apertados pintados de negro? Bem esta coisa das cores capilares também já tem pouco significado: são verdes, são espigas douradas, são multicolores, são couro cabeludo despido da protecção que lhe é devida. Enfim, tudo vale para enfeitar, as mais das vezes com sentido estético duvidoso, as capas das revistas, as vaidades dos próprios e dos seus fãs, as bancadas das alusivas inutilidades de ocasião. Enfim, se quem produz tem responsabilidades, quem assegura o mercado tem culpas.
'A Croácia construiu um colectivo com valores individuais' Se assim foi, quem sou eu para o negar, por que não se valoriza esta capacidade em contextos de outras taças? Os colectivos não são inimigo nem adversário de identidades particulares!
'A restauração viu as suas expectativas irem por água abaixo'. E a restauração em sentido mais abrangente? Em que lugar da escala colocou o ratio expectativa/realidade?
Parece que a venda de armas de arremesso, quer dizer, garrafas, bastões, falta de dignidade, esteve em alta. Ou não?
E a luta livre não encheu os bolsos de adeptos fora do ringue? O vale-tudo, por mais gratuito, não custou caro?
Não sei porquê, o meu roteiro de férias teima em mostrar sublinhados em indicadores supostamente relevantes e setas em orientações eventualmente despudoradas. Como profissional atenta destas coisas da Educação, dou comigo a transpor competências para o campo em que jogo e que é do tamanho do mundo. Revejo processos, tácticas, estratégias, apoios logísticos, recursos de toda a ordem, vitórias, derrotas e, quase nunca, empates.
Só um parênteses endereçado particularmente aos amantes do futebol: eu até penso que o sentir com desportivismo é das melhores atitudes que se deve ter perante a vida; digo mais, o espectáculo do futebol está em bom lugar entre as matérias que conseguem animar o meu sentido de análise estética e ética, perante a caixinha da televisão. Pode ser lindo de se ver, é lúdico, pode ser inteligente, permite descompressão, acelera a corrente de adrenalina que não se estabeleceu para velocidade constante, pode ser educativo.
E, como o parênteses perdeu o nome por ser longo mais do que a conta, com ele vou fechar o texto, para ter tempo de pensar em processos de autonomia, projectos educativos, contactos com a realidade. Todo o discurso foi inconclusivo (como eu gosto) e com uma pitada de virtual (como eu sonho).

Setembro de 1998
Iracema Santos Clara


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto
Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto

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