Em volta do tema Identidade, e das práticas e representações que a produzem e a reproduzem, aqui vou escrever na Página, até à Primavera do próximo ano. O tema parece-me actual, importante, e para mim, confesso, é apaixonante. Tentarei falar não só de teorias antropológicas, sociológicas e psicológicas, mas também de casos práticos da vida de todos os dias. De escolas, de alunos, de professores, de pais, mas também possivelmente de pensamentos e praxis de outros cidadãos. Esta minha intenção constitui, sem dúvida, também um grande desafio. Para mim próprio, que de repente, em período de férias, avanço com todas estas propostas assim a quente. Um tema, também quente, quiçá não para tempo tão quente. Pólos iguais, retira-se da física, repelem-se. É que de facto o tempo agora é de abrandamento, de alguma paragem, de alguma contenção (financeira talvez nem por isso), de reflexão, diversão. Tempo de escrita só para uma pequena parte. De leitura para muitos. Restaria averiguar de quê. Trata-se, enfim, fundamentalmente de um tempo em espera. De alimentar o espírito. Um tempo de viagens. De recreio. Um tempo de romance, biográfico, autobiográfico, e outros. De romance de facto... De modo que, quase me apetece ficar pelas apresentações. De saída, como teorizar sobre o ser? Véspera de veraneio, de ser turista e não professor (como separar os dois ou as outras partes desse ser?), em vésperas do meu próprio romance, como vou eu começar a escrever sobre identidade? Talvez pela reflexão sobre o meu próprio quotidiano actual: praia, relaxe, jornais, livros, grelhados regados com vinho e digeridos com algumas observações e reflexões familiares. A ciência e as crónicas do quotidiano dos outros ficarão para a próxima. 'Já não sou eu, mas outro que mal acaba de começar' Samuel Beckett Acabo de ler os primeiros livros deste tempo de recarga de baterias: Terceiras Pessoas, um romance de Helena Marques, De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, e um outro, a caminho já outra vez dessa minha parte mais académica - talvez um inconsciente que quer voltar aos livros científicos (ainda que cada vez mais os separe menos dos ditos de literatura, de romance, etc. Como diz José Cardoso Pires, 'assim como a literatura não é uma academia de frases, também a ciência não é um sacrário de tecnologias') - Identidade e Mudança de León Grinberg e Rebeca Grinberg. Do primeiro elejo uma frase que vem ao encontro das questões que aqui quero discutir, designadamente que a identidade não é um facto ou uma estrutura estática, mas antes um processo dinâmico onde os outros interagem connosco, com o nós, com o eu, e os reconstroem: 'E aprender também uma sólida, solidária noção dos outros, as Terceiras Pessoas, Como dizia a tia Maria Ildefonso, o mundo não é constituído só por nós, os que nos conhecemos desde sempre, os que nos encontramos todos os dias. O mundo é sobretudo constituído por elas, pelas Terceiras Pessoas, aquelas de quem nada sabemos ou de quem pouco sabemos e que, um dia, inesperadamente, saem do desconhecimento ou das sombras e vêm ao nosso encontro, subvertem os nossos conceitos e influenciam as nossas vidas ou são por elas influenciadas, meu filho, tudo seria insuportavelmente previsível e monótono sem terceiras pessoas' (Marques, 1998: 54). São estas terceiras pessoas que ao entrarem no mundo de cada um de nós, contribuem para o tornar mais relativo, mais múltiplo, mais plurifacetado. As terceiras pessoas podem contribuir para a reconstrução da identidade pessoal, quando há uma assimilação e integração bem sucedidas das identificações fragmentárias que retiramos dos outros; quando estas dão origem à organização de um novo todo, de uma nova unidade cultural com características únicas que permitem distinguir um indivíduo dos outros. Mas são também essas terceiras pessoas que podem contribuir para uma certa resistência à incorporação de elementos exteriores. Para um certo fechamento sobre si mesmo. Para uma certa resistência à mudança. Como retirei do terceiro livro que li 'a tendência ou necessidade para evitar mudanças pode alcançar, em certas ocasiões, um alto grau de patologia, conduzindo a uma compulsão à repetição, à necessidade de conservar a qualquer custo (por vezes a própria neurose, a doença somática, a psicose) os aspectos e modalidades da realidade e do self que não se querem expor à mudança' (Grinberg, 1998: XV). Entrar na mudança é assim aderir ao novo, incorporar o desconhecido, o que pode levantar grandes dúvidas e sentimentos de ansiedade e até de depressão. O segundo livro trata dum percalço da história de vida de José Cardoso Pires, descrito por ele mesmo a propósito da sua perda de identidade. Como refere João Lobo Antunes no prefácio à mesma obra, Cardoso Pires sofria de uma afasia grave, pois não era capaz de gerar palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que iam irrompendo no seu cérebro. Ainda a propósito de identidade, retiro desta obra o seguinte trecho bem elucidativo da dinâmica entre o eu e o outro, do outro de mim: 'Ainda hoje estou a ouvir aquele «é». Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto. Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa (ele, ou o meu nome, é)... ' (Pires, 1997: 23). É assim que as representações de José Cardoso Pires foram abaladas, modificadas, que a sua própria identidade foi reconstruída. Tornou-se ele próprio num eu mais multi-instruído. Um eu que reflectiu nesta obra sobre como o outro de mim viajou no eu de então, isto a ponto de se questionar se estaria a ficar louco. Morte cerebral foi o que os media noticiaram. Mas foi também talvez uma viagem que permitiu passar pelo que os médicos e a ciência têm ainda muita dificuldade: o mundo subjectivo dos doentes. É uma história clínica que sublinha a importância de se estudar a doença como perda de identidade. Um estudo de caso que volta a frisar a primazia do todo sobre as partes, da globalidade do corpo sobre as funções específicas das partes do mesmo. Ou como sapientemente e também poeticamente, João Lobo Antunes escreveu: 'este «brainchild» é um testemunho impressionante de como o génio criativo floresce no sofrimento' ((Pires, 1997: 18).
Ricardo Vieira Mestre em Antropologia e Sociologia Doutor em Antropologia Social Professor da ESE de Leiria, 2400 Leiria e-mail mop48909@mail.telepac.pt Referências bibliográficas GRINBERG, Léon e GRINBERG, Rebeca (1998). Identidade e Mudança, Lisboa: Climepsi Editores. MARQUES, Helena (1998). Terceiras Pessoas, Lisboa: Dom Quixote. PIRES, José Cardoso (1997). De Profundis, Valsa Lenta, Lisboa: Dom Quixote.
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