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Havemos de voltar à EXPO'98, 'no ano que vem, quem sabe?'

O dia adivinhava-se quente como o Inferno. Quando chegamos à EXPO, pouco passava das10 horas mas o calor já apertava bem. O pai soprava como sempre faz quando alguma coisa não está a correr como ele quer. De repente viu as casas de banho e disse: 'esperem aqui por mim que eu volto já'. Demorou meia hora, mas quando regressou vinha reconciliado com a Exposição Mundial de Lisboa. A dos Oceanos.

'Sabem que as casas de banho têm toalhas de pano? Daquelas enroladas, que se puxa até à parte seca e limpa. Como há nos restaurantes. Ao preço de cada bilhete, bem podem ter toalhas de pano nas casas de banho. Outra coisa bem pensada é a água. Sai muito fresca, até sabe bem lavar as mãos com este calor. Aposto que é de propósito. Já viram os cartazes que há por aí a dizer que é preciso beber muita água? E a água das casas de banho é boa. Vi gente a bebê-la'

Ficamos a olhar. Teria o pai conseguido utilizar as casas de banho da EXPO? E teria bebido água da torneira? Se assim foi está algum santo para cair do altar. O pai não consegue servir-se de uma casa de banho fora de casa. É sempre um problema. Nas férias, a situação remedeia-se só ao terceiro ou ao quarto dia. Nem em casa do tio Júlio (que é o irmão que ele mais gosta), onde tinhamos asilado para a EXPO, o pai costuma estar à vontade.

'Já viram o símbolo das casas de banho? Isto é que é 'design' de categoria! Acho que é de um japonês muito conhecido. Uma referência nesta matéria. É igual para os homens e para as mulheres. Sendo diferente, como é obrigatório. A cara é a mesma, redonda e com dois pontos que são dois olhos. O que varia é o laço. Se tiver no cimo da cabeça é menina, se tiver no pescoço é menino. Bem pensado...'

O pai estava definitivamente cativado pelas casas de banho da EXPO. Até discursava sobre a sinalética da exposição. Aplaudindo... Há muito tempo que não o ouvíamos dizer bem fosse do que fosse. Para ele está tudo sempre mal feito. Para ele, os portugueses de agora não são capazes fazer nada em condições... E para ajudar à missa, já se sabia que tinha havia um desfalque e que um maioral tinha ido dentro.

'Não foi nas casas de banho que os gajos gamaram... Aquilo ali é à grande e à francesa... Onde os filhos da p... meteram a unha foi nas árvores. Não há árvores! Eu já li num jornal qualquer que até andam a contá-las, para ver se a quantidade corresponde ao que consta nas facturas. Uma vergonha. Que horas são? Quase onze e meia e ainda só vimos as casas de banho. Eu não disse que era preciso levantar mais cedo. Toca a andar. Vamos ao Pavilhão da Realidade Virtual. Deve ter pouca gente, é a pagar'.

A gente sabia que era inútil ir à Realidade Virtual. As filas de espera andavam sempre nas três quatro horas. Mas o melhor seria fingir desconhecimento e deixá-lo descobrir a realidade real. Dizer-lhe que o pavilhão é dos que vai ficar para além da EXPO também nada adiantaria. Ele precisa sempre de ver para crer. E, às vezes, nem vendo. O pai é assim. Mas no dia da visita à exposição estava particularmente bem disposto. Ninguém o reconhecia.

'Três horas e meia na bicha? A pagar? Devem estar é doidos. Nós não ficamos aqui. Era só o que faltava. Este pavilhão até é dos que vão ficar. Nós vamos é almoçar. Mas não vamos ao MacDonalds. Vamos por aqui, para o lado Norte. Eu sei que há uns restaurantes muito bons. De países estrangeiros. É para lá que vamos. Mas não pelo meio dessa cortina de água. Eu não quero que ninguém se molhe, ouviram?'.

O pai estava nitidamente deslumbrado com os jardins da água. Olhava para a queda de água, a tal que forma uma cortina, como quem olha para uma tentação irresistível. Acho que a gente nunca o tinha visto assim, tão solto. A implicar pouco. A implicar claramente menos do que o habitual. Parecia que estava a reconciliar-se com o Mundo. Parecia que a água estava a lavar-lhe e a levar-lhe as amarguras.

'Isto é um roubo de igreja. Uma roubalheira incomportável. Querem ganhar tudo num dia. Eles é que ficam a perder. Devia ser proibido. Isto está feito para o dinheiro dos estrangeiros. Filhos da p... Eu não dizia? Eu já desconfiava que era assim! Filhos da p... Vocês querem ir ao MacDonalds, não é? Ok, vamos ao MacDonalds. Ficamos despachados. A gente não veio aqui para comer. Viemos para ver a Exposição. Nesse tal MacDonalds é mais rápido'.

Não era. Não era nada mais rápido. Havia fila para entrar no restaurante e fila, lá dentro, para comprar a refeição. Penso que o pai nunca tinha entrado num MacDonalds. A gente sim, a gente gosta da receita, mas ele teria preferido, quase de certeza, outra proposta gastronómica. Necessariamente mais cara, incomportavelmente mais cara, o que estragava tudo, o que estava a estragar o dia ao pai.

'São quase três horas da tarde e ainda não vimos nada. Devíamos ter trazido umas sandes. Não tínhamos perdido tanto tempo a comer. Tirando esses cabeçudos dos olharapos, ou lá como é que eles se chamam, ainda não vimos nada. Só vimos olharapos e bichas. Agora vamos ao Oceanário. Demore o tempo que demorar. Se for preciso compro um desses bancos de papelão qua andam para aí a vender'.

Foi preciso. Tivemos que comprar o banco de papelão. Custou 500 escudos. Esperamos mais de duas horas para entrar no Oceanário. Por sorte o pai meteu conversa com um senhor, que também estava na fila de espera, e que dizia ser um professor desiludido com o sindicalismo docente. O pai até de reaccionário o chamou. Mas ficaram amigos. Afinal tinham andado, na mesma época, em Coimbra.

'A menina desculpe, mas não precisa de ficar histérica só porque aquele senhor disparou um 'flash'. Essa dos peixinhos ficarem traumatizados com a luz dos 'flash' é treta. Mais a mais aqui, nesta varanda cheia de luz natural. Ainda se fosse lá dentro, no escuro. A menina tem de aprender a falar com as pessoas. É o dinheirinho das pessoas que lhe paga o ordenado. Sabia?'.

A menina tinha percebido que o melhor, para ela, era ignorar a situação. Na verdade a menina era um bocado parva, mas o pai também podia ter ficado calado. Afinal não era nada com ele. O pai nem máquina fotográfica tinha. Mas ele sempre foi assim. O que tem a dizer, diz. A mãe dizia que o pai tem os olhos tristes e cheios de amarguras por ser assim, frontal.

'Estava a contar com outra coisa. A gente nem fica a saber que peixes é que viu. Eu sei que os peixes não podem trazer letreiros ao pescoço, mas devia haver alguém que explicasse qualquer coisa. Aquelas meninas só estão ali para controlar os flash. Também não sabem mais nada. Sabem o que é um flash e nada mau... E sabem levantar a voz para um homem que podia ser pai delas'.

Quando saímos do Oceanário já passava das seis e meia da tarde. O pai estava, claramente, cansado. E havia ainda tanto para ver... Dos pavilhões temáticos faltavam o de Portugal, o do Conhecimento dos Mares, o do Futuro, o da Utopia... Pelo menos esses. E os pavilhões dos cento e tal países? Nem um. Mas já não havia tempo para mais. Tudo isto fecha às oito da noite. Depois das oito é a EXPO da noite e dos espectáculos. Talvez conseguíssemos visitar o da Swatch.

'Vanos lá ao Pavilhão da Swatch. Já li uma crónica de um jornalista a dizer que os gajos nos dão música à chuva. Eles e os da Sony é que estão a aproveitar bem a EXPO. Mais a Sony do que a Swatch. São das marcas associadas as que melhor se colaram à exposição. Também quero ir à Praça Sony. Para ver o ecran. Dizem que é único do Mundo e todo em cristais líquidos. Já não vamos conseguir ir ao de Macau. Paciência, pode ser que a gente ainda volte cá'.

O pai gostou muito do Pavilhão da Swatch. Principalmente de andar, de guarda-chuva erguido, a descobrir as sonoridades musicais da água a bater no pano do guarda-chuva. Fez aquele trajecto duas vezes. Gostou tanto que, à saida, comprou dois relógios Swatch Adamastor (de homenagem à EXPO), um para mim outro para o meu irmão. A gente nem sonhava com tal.

'Já estou outra vez com fome. Mas agora vamos às sandes. Poupamos tempo e dinheiro. Eu vou à Casa do Preto. Vendem lá sandes de leitão. Não será como na Mealhada, mas está a apetecer-me. E se os gajos tiverem um espumoso fresquinho, a coisa compôe-se. Vocês podem ir às francesas, às 'baguettes'. Ou às pizas. Vou dar mil paus a cada um mas têm de se desenrascar'.

Duvido que o pai tenha reparado na 'Peregrinação'. Passou por ela, quando ia a caminho da sandes de leitão, mas pela forma como olhou para os carros deve ter pensado que eram uma espécie de olharapos diferentes. Nós, entretanto, partimos em sentido contrário. Tínhamos combinado encontrarmo-nos pelas 11 horas, na Praça Sony. Junto à Adrenalina.

'Tintarela de luna... tu, turi, turi, tutu, ohhhhh, tururu.... Tintarela.... Vocês já chegaram? Tive azar. Hoje, isto aqui não presta. Os gajos de Lisboa é que têm sorte. Podem escolher o dia de visita à EXPO quando actuar um bom artista na Praça Sony. A gente de fora vem qando pode. E quando pode é isto. Vamos lá ver o fogo, a água Matrix ou lá como é que isso se chama. Já estou farto de estar aqui.'


Não sei se o pai gostou ou não do Aqua Matrix. Ele viu o espectáculo em silêncio, do princípio ao fim. Quando acabou olhou para nós e disse: 'vamos embora, talvez a gente volte cá, para o ano que vem'. Não sei se ele sabe que a EXPO acaba no final de Setembro. Só sei que eu e o meu irmão gostamos muito de ter visitado a exposição com ele, apesar de não termos visto quase nada. Apesar de termos visto menos do que quando ali estivemos com a escola.

João Rita


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

João Rita
Jornalista, Porto
João Rita
Jornalista, Porto

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