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Valter Gomes (Quercus) em entrevista à Página

A consciência ecológica dos portugueses forma-se (quase só) na pedagogia da desgraça

A educação é também um processo de formação de cidadãos atentos

Este mês entrevistamos Valter Gomes, um dos doze elementos que fundaram a Quercus, em 1985, na altura Grupo para a Conservação da Floresta e Fauna Autóctenes. Já passou por quase todos os cargos no interior desta estrutura e dirige actualmente o Centro de Educação Ambiental de Matosinhos. Quanto ao resto, afirma-se apenas um cidadão responsável e activo.

P - Como define a consciência ecológica dos portugueses?

R - Em termos gerais, o nível de sensibilidade para as questões ambientais está muito acima daquilo que se verificava há cinco ou dez anos. Quanto à verdadeira substância dessa consciência, ela resulta mais a partir daquilo que denominamos a 'pedagogia da desgraça' do que propriamente de uma consciência fundamentada no conhecimento e na inquietação.

A comunicação social tem tido um papel importante a divulgar questões com implicações no ambiente, mas só chama a atenção quando já aconteceu a desgraça. Infelizmente, está viciada em termos processuais porque tem de vender jornais. Investe muito pouco na formação. E mesmo aqueles que lhe atribuem importância dão-lhe um espaço reduzido. E isso é negativo, porque sabemos que vivemos numa sociedade cada mais apática, em que as pessoas não participam nos processos.

P - Nesse contexto, que papel desempenha a educação ambiental?

R - Eu sou extremamente crítico em relação àquilo que se tem feito. Um dos recursos mais parcos é o tempo. Eu sei que os elementos do planeta não são de uma geração, nem de várias gerações, mas a minha angústia continua a ser o resultado de eu ter só uma vida. De qualquer forma, em cem anos produzimos alterações demasiadas. E não só nas questões ambientais. Temos estado a fazer umas coisas giras com as crianças, mas de pouco alcance.

A carta de Belgrado e a declaração de Tbilissi referem, claramente, a necessidade de despertar consciências, potenciando novas capacidades e novas atitudes, antes de se promover o conhecimento. E isso não é feito nos exercícios de educação ambiental. Existem exemplos de trabalhos e de exercícios líndissimos na escola, mas a maior parte fica-se pelo início. Passa-se o ano lectivo e reinicia-se o mesmo trabalho no seguinte, e por aí adiante...

P - Falta então uma política concertada?

R - Falta pensar-se que a educação não é o ensino a que nos habituamos: o débito de conhecimentos do professor para o aluno. A educação é um processo de formação de cidadãos atentos e não de membros de um rebanho.

A manipulação de alimentos, por exemplo, é uma questão actual e que irá ter muitas repercussões no futuro. Mas não se discute na escola. É claro que uma questão como esta não pode ser discutida a nível do ensino básico, mas devia pensar-se introduzi-la em níveis de ensino mais avançados. E quem fala desta questão, fala também das outras.

Introduzir a educação ambiental na escola não a partir de um programa pré-estabelecido - porque não é possível fazer um manual de educação ambiental como acontece nas outras disciplinas. Não se pode falar do problema da desertificação do Alentejo no Minho. Não se pode falar do problema da floresta numa zona do litoral.

P - Integrar então um programa de educação ambiental noutras matérias?

R - Sim. E ter espaços no tempo lectivo para exercícios de cidadania, consequentes e fundamentados nas questões que constituem a realidade próxima dos alunos, com orientações estratégicas e objectivos pedagógicos muito bem definidos.

No pré-primário tenta abrir-se o espírito de curiosidade às crianças e incutir-lhes o gosto pela participação e pela utilização do conhecimento enquanto instrumento. Depois, no 1º ciclo, há uma mudança radical: abandona-se a vertente lúdica e passa-se para um ensino de carácter curricular.

A partir desse nível as crianças começam a ter muitos professores e perde-se a integração dos saberes. Muitas vezes, porque os próprios professores não falam nessa possibilidade de trabalho. A escola morre por desconexação total entre os agentes. Perde-se o gosto pelo conhecimento.

P - O Ministério da Educação e do Ambiente têm tomado iniciativas para desenvolver a educação ambiental nas escolas?

R - De certa maneira, sim. Este centro de educação ambiental (de Matosinhos) é disso um exemplo. Temos aqui uma professora requisitada, paga pelo Ministério do Ambiente.

Mas, mesmo assim, parece-me que falta ainda ao Instituto Português de Promoção Ambiental (IPAMB) definir uma estratégia concreta para a rentabilização destes docentes, em exercícios de carácter diferente, que tenham um efeito multiplicador.

P - Então, cada um dos ministérios puxa para seu lado?

R - É preciso reflectir a fundo sobre o que pretendemos da educação ambiental.

P - E não há experiências noutros países que possam servir como modelo?

R - Sim. Mas o que sabemos nós das experiências estrangeiras? Que eventos realizados no nosso país divulgam essas experiências? Há pouco tempo, em Coimbra, realizaram-se umas jornadas de educação ambiental. No entanto, a melhor comunicação do encontro foi truncada pela moderadora porque o tempo tinha acabado. É por isso que eu digo que muitas vezes eles não passam de feiras de vaidades. Apresentam-se projectos que fogem aos objectivos da educação ambiental, actividades desgarradas. Pode ser actividades integradas em projectos de educação ambiental, mas, em si, não são exercícios de educação ambiental.

Falta estabelecer uma prática corrente de avaliação contínua. É preciso avaliar os processos e pôr-se em causa os métodos.

P - De que forma será possível alterar essa situação?

R - A educação ambiental tem de dar lugar a espaços de reflexão muito sérios. Estamos a falar de um exercício de cidadania e da resolução de problemas graves. E isso passa também pelos conceitos. Muitas vezes, seja em acções de formação seja em encontros de educação ambiental, perguntam-me que acções concretas se podem desenvolver. E eu digo que mais do que saber fazer precisamos de saber o porquê daquilo que fazemos.

Quando fazemos uma campanha de limpeza das margens de um rio, por exemplo, não estamos a resolver o problema de fundo. Se for parte de um exercício mais completo concordo, mas não isoladamente.

P - Mas não se cai no risco de ser-se demasiado perfecionista?

R - Não concordo. O problema não é aquilo que nos aparece à vista. É a sua causa. Podemos sempre iniciar um exercício de educação ambiental e chegar até às etapas possíveis, ainda que parcelares. Mas temos de ter percepção do tempo disponível, dos recursos e do projecto possível, e avaliar permanentemente o que fazemos.

Mas, principalmente, para elaborar um projecto temos de saber os objectivos que nos propomos atingir. Se o rio apresenta as margens cobertas de lixo, então chegamos à conclusão que o problema não é ambiental, mas social. É aí que devemos incidir os nossos esforços. Tem de alterar-se comportamentos, mas as pessoas têm de perceber o porquê. Ou seja, tem de haver uma relação directa entre um comportamento e os seus resultados, entre os direitos e os deveres do cidadão em relação ao meio.

A racionalização na utilização do papel é disso um bom exemplo. Na escola não se ensina os alunos a utilizar a parte de trás das folhas. E quando se pergunta aos alunos se sabem o que é a política dos três erres, eles dizem: 'isso era no 7º ano...'.

O que terá acontecido? O exercício de reciclar papel foi impingido. 'É mais uma treta que tenho de fazer', devem pensar eles. Passou, acabou. A nossa sociedade, extremamente consumista, cria valores como o desperdício, sinal de riqueza e de estatuto social. A educação ambiental tem a ver com a escala de valores e com as opções civilizacionais.

A educação é também um processo de formação de cidadãos atentos

Por isso é que fazer educação ambiental não passa por chegar à escola e falar de reciclagem, simplesmente. Se calhar devíamos falar da regularização de ribeiros, porque é o que se está a fazer no ribeiro que passa na nossa terra. Ver as funções dele, estudá-lo. E aí metemos a matemática, as ciências, a língua portuguesa, a história, etc...

P - De que forma?

R - O ano passado apresentamos uma proposta, numa escola do Porto, para um trabalho intitulado 'Este rio que nos chega'. A proposta era olhar para o rio Douro e descobrir que, antes de vir aqui desaguar, passa por outros locais, por outros povoações e culturas. Perceber o rio e a vida em torno dele, por exemplo, é um excelente exercício para a disciplina de história. Porque razão os povos se fixaram neste local e não naquele? O rio é só um pretexto.

Na reunião que mantive com os professores, um deles perguntou-me onde é que a disciplina de português se podia encaixar. Mas será que não podemos procurar na literatura portuguesa o que se fala destes e de outros rios? E das actividades das pessoas? E não podemos escrever sobre isso?

P - O associativismo ambiental está desenvolvido no país?

R - A Quercus foi responsável pelo desenvolvimento do movimento associativo em Portugal e impulsionou muitas outras associações, locais e nacionais. Tenho a impressão que actualmente há mais simpatia pelos movimentos de conservação da natureza. As associações são reconhecidas e acarinhadas pelo cidadão. Mas temo que as pessoas estejam a descansar sobre o trabalho dos outros, porque sabem que existe quem se preocupe e actue por elas. Tornam-se exigentes em relação aos movimentos associativos como se eles tivessem a responsabilidade de se substituirem ao Estado. E telefonam-nos como se tívessemos carros de polícia e pudessemos prender os maus da fita.

É evidente que se verificou um salto, mas ele deve ter um acompanhamento qualitativo. E isso passa pelas pessoas perceberem que os problemas também têm de ser resolvidos por elas. A participação nas associações é uma forma de ajudar a resolver os problemas.

P - As associações ambientais têm algum poder nos actos decisórios?

R - A Quercus tem, como resultado de acções muito concretas que vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Que resulta da nossa postura e do facto de sermos endiabrados, mas também por criticarmos com base em fundamentação técnica e científica. Mas, em geral, há uma subida qualitativa a nível da intervenção das associações. Há uma maior preocupação em não falar-se emotivamente, sem fundamentação. Podemos, por exemplo, dizer que o programa de tratamento de resíduos deste governo teve como base muito trabalho nosso.

As associações têm sempre um estatuto de contra-poder. Mas não podem perfilhar a crítica pela crítica. Acima de tudo, somos cidadãos responsáveis, organizados, com direitos e deveres. E um dos deveres é sermos alvo de crítica e não ficarmos na posição de quem atira pedras sem apresentar propostas alternativas.

P - O conceito de poluidor-pagador tem funcionado em Portugal?

R - Tem havido demasiadas facilidades. Aceita-se muito a chantagem das indústrias e nós devíamos ser extremamente duros em relação a isso. Os custos não podem ser sempre sociais, porque os lucros são privados.

No recente acordado Plano de Desenvolvimento Sustentado da Floresta, as empresas de celulose conseguiram linhas de financiamento para a reconversão de eucaliptais. Mas quem planeou mal o cultivo e o abate é que devia pagar os custos. Não concordo que seja o Estado a suportar os erros dos privados. Ainda por cima, erros anunciados pela Quercus. Não podemos continuar a incorrer no mesmo erro e permitir, como se afirmou em reuniões preparatórias deste documento, que o Estado deve elaborar legislação adequada aos interesses da fileira. Mas os intereses da fileira são de quem: da floresta ou da indústria do papel? As empresas não querem saber. Saem de cena e vão plantar noutro lado.

P - O caso da mina de Castromil, em Paredes, foi um bom exemplo de como a sociedade civil se pode opôr a interesses particulares?

R - Perfeitamente.Temos de combater as ideias de crescimento baseado nos indicadores económicos, e falar muito seriamente do desenvolvimento social. Temos de ver quem beneficia com o quê. O interior do país, por exemplo, é um autêntico couto de caça, pertencente a quem anda armado. O país beneficia? Cria postos de trabalho?

P - Como classifica a actuação do Ministério do Ambiente?

R - Teve alguns momentos interessantes, como é o caso da política de resíduos. Mas há ainda demasiados compassos de espera. Faz-se muito pouco em termos de medidas de fundo. Veja-se a questão do litoral. Os contribuintes portugueses não têm obrigação de pagar a reparação da falésia onde está instalado um campo de golfe. Se foi um erro de ocupação e corre o risco de cair, que caia. É pedagógico. De certeza que mais ninguém se irá lembrar de construir em zonas de risco. Mas se pagarmos meio milhão de contos para sustentar os alicerçes de um restaurante, concerteza que muitos mais aparecerão. É uma questão de opções. É por aí que passa a concretização da educação ambiental, pela formação de uma população responsável.

P - Como vê o plano da Rede Natura 2000?

R - É um avanço, com algum medo à mistura. Compreendo que do ponto de vista técnico houvesse ainda alguns elementos incompletos, mas sinto que faltou alguma garra para assumir que a opção é a mais correcta e que surge em nome de valores fundamentais.

P - Que papel têm desempenhado os centros de educação ambiental em Portugal?

R - Estamos praticamente no início. São ainda poucos. O primeiro surgiu no Porto, depois em Monsanto, em Ourém e, desde o ano passado, em Matosinhos. Todos eles são da responsabilidade da Quercus. Depois há também uma rede de ecotecas, geridas pelo IPAMB, mas que funciona mal. E não digo isto por se tratar de uma questão de concorrência. Este centro, aliás, está integrado na rede de ecotecas.

Fundamentalmente, têm objectivos diferentes. Nós não perseguimos números. Não é importante que passem por aqui cinquenta mil crianças, até porque isso significaria que a qualidade da aprendizagem ficaria aquém do que pretendemos. As ecotecas, pelo contrário, começaram a funcionar numa perspectiva estatística. É por isso que, ao contrário delas, apostamos tanto na produção de materiais e no apoio às escolas.

P - Há muitas pessoas a visitar este centro de educação ambiental? Sabem que existe?

R - Vamos entrar agora no segundo ano lectivo. O primeiro foi praticamente para instalação. É um processo difícil, que tem se ir ganhando. Mas tinha perspectivas mais optimistas. Temos salas cheias, mas a participação não corresponde. Estamos convencidos que os centros de educação ambiental vão ter um crescimento substancial no país. Mas não temos pressa, porque não perseguimos números. Temos é de ter a certeza que o que estamos a fazer é o correcto. Afinal, as consciências não se mudam do dia para a noite.

Entrevista de Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Walter Gomes
Ambientalista. Director do Centro Ambiental de Matosinhos
Walter Gomes
Ambientalista. Director do Centro Ambiental de Matosinhos

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