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Marionetas Portuguêsas Abandonadas a um Canto

 

O teatro de marionetas tradicional português é uma arte desconhecida, pouco divulgada e talvez por isso esteja tão votada ao abandono. Com o desaparecimento dos últimos mestres bonecreiros - dos quais António Talhinhas, do Alentejo, é hoje o único testemunho vivo - perdeu-se muito de um riquíssimo património legado ao longo de gerações, ou não fosse o teatro de marionetas um mundo secreto de tradição oral. A atenção dispensada pelas instituições culturais, públicas e privadas, é escassa, levando a que sejam associações locais ou particulares a tomar o seu papel. É o caso de Francisco Mota e Maria Palmira.

O teatro de marionetas e de sombras nasceu enquanto palco de representação do divino, tendo ganho um carácter crescentemente profano ao longo dos séculos. As mais antigas representações recuam ao tempo dos egípcios e das civilizações chinesas e indianas e baseavam-se em textos sagrados. Daí, chamarem-se Dramas Sacros. Durante o Concílio de Trento (1546-1563), foram proibidas as representações com marionetas nas igrejas. Expulsos dali, os artistas manipuladores fixaram-se nas suas proximidades, continuando a exibir o mesmo repertório.
No final desse período, por volta de 1650, o crescimento cultural na Europa difunde a utilização da marioneta de luva, ou fantoche, dando lugar à criação de personagens tão famosos como o polichinelo, ou 'voz de galo', italiano, Jude e Punch, em Inglaterra, ou o polichinelo francês e o seu congénere, o Guignole, da cidade de Lyon.
Em Portugal nunca existiu qualquer personagem de luva que possa considerar-se representativa da cultura bonecreira nacional. Decisiva nesse sentido foi a influência dos bonecreiros, durante o reinado filipino, inculcada através dos chamados 'titereiros' (daí, ainda hoje, em certas zonas fronteiriças do Alentejo, chamar-se títeres ao teatro de robertos).
Já no século XVIII eram vulgares dois tipos de representações: as óperas profanas e os presépios, estes últimos representações sacras mas adaptadas para Bonifrates.

Bonifrate é um nome dado à marioneta tradicional portuguesa desde os tempos medievais, derivando do latim 'bonus frater', ou 'bom irmão', monges de itinerância que transmitiam o conhecimento pelos mosteiros e terras. Devido aos bons conselhos que habitualmente tinham para dar, as pessoas começaram a associar a sua personalidade aos bonecros (1) do teatro tradicional de marionetas, também eles impregnados de simbologia e de conselhos subliminares.
Quanto ao outro nome conhecido, Roberto, desconhece-se a sua verdadeira origem. Existem, no entanto, duas possíveis interpretações: uma delas aponta para nome do empresário Roberto Xavier de Matos, que, em 1813, dirigia o Teatro do Bairro Alto; outra, ligada ao grande sucesso que alcançou a ópera ëRoberto do Diaboí, baseada na história do Grande Roberto, Duque da Normandia e Imperador de Roma.

Uma caixinha de surpresas

ëEste é apenas um dos mistérios que continua por desvendar por falta de um trabalho de pesquisa sério e apoiadoí afirma Francisco Mota, investigador das raízes do teatro português de bonifrates e executante profissional de marionetas.

Quando se começou a interessar por esta arte, há cerca de catorze anos, verificou que não existia nenhuma compilação dos textos e das técnicas tradicionais do teatro de bonifrates. Consagrando-lhe o seu tempo e o seu dinheiro, iniciou um estudo pormenorizado e realizou um arquivo desse espólio. Um trabalho paciente, que implicou a procura de mestres bonecreiros que ainda actuassem e pudessem descrever as histórias, transmitir ensinamentos e revelar segredos guardados na alma. A oralidade, base dessa transmissão de saberes, constituiu, desde sempre, um impedimento natural da sua divulgação.
Há quatro anos, Maria Palmira, educadora de infância e uma apaixonada pelo teatro, juntou-se a Francisco Mota no trabalho de pesquisa. A sua experiência de animação comunitária em Évora, onde foi convidada a integrar uma unidade de infância e a desenvolver um trabalho de investigação, animação e criação de peças de marionetas destinada a educadores, professores e auxiliares, levou-a a querer descobrir mais.
Aquele a quem chamam ëo mestreí, Domingos Moura, de Matosinhos, foi um dos raros bonecreiros com quem contactaram directamente, e dele herdaram o espólio. ëNa década de 50, era fácil encontrá-lo com o seu teatro de robertos nas praias, feiras e romarias do norte do país e nos jardins do Portoí dizem.
A investigação conduziu-os também a António Talhinhas, o último de uma geração de bonecreiros de Santo Aleixo. Tendo em mestre Salas, o apresentador, e em padre Chanca, o clérigo desonesto, os seus mais distintos personagens, os bonecros de Santo Aleixo são porventura a mais representativa marioneta portuguesa. Com a postura e as técnicas retiradas do teatro medieval, as peças baseiam-se em textos retirados da bíblia, onde se mistura o divino e o profano, histórias sagradas e vivências do meio.
Os bonecreiros eram poetas populares de improviso, com o qual conseguiam estabelecer uma relação com o público, incentivando-o a sugerir deixas e a responder aos piropos. Essa ligação estreita com o povo, porém, nunca foi bem vista pelas autoridades. ëNão conheço nenhum bonecreiro que não tenha sido perseguido ou preso - Domingos Moura é disso um exemplo - e na idade média alguns chegaram mesmo a ser queimadosí, diz Francisco Mota. ëDiziam o que não convinha, enxovalhando as figuras representativas da sociedadeí.
Apesar da popularidade, a sobrevivência era difícil. O público sempre foi constituído maioritariamente por crianças, fazendo com que vivessem praticamente de esmolas, ou do 'migalho', como a elas se referiam.

Pelo caminho, Francisco Mota e Maria Palmira descobriram também que a marioneta tradicional encerra diversos segredos. Um deles esconde-se na voz alterada dos bonecreiros, conseguido através de uma palheta bocal que confere os tons esganiçados e divertidos que emprestam às personagens. Uma técnica mantida tão estrita ao longo dos tempos, explicam, ëque muitos morreram por revelá-laí. Outra das facetas secretas é o som da guitarra que acompanha os espectáculos dos bonecros de Santo Aleixo, afinada especialmente para o instrumento adquirir uma sonoridade ëquase mágicaí.

A arte ao serviço do ensino

Apesar do trabalho de recuperação encetado por Francisco Mota, Maria Palmira e outros investigadores, desconhece-se com exactidão a história do teatro de bonifrates em Portugal e o espólio que o constitui, porque não existem iniciativas ou apoios oficiais para se elaborar uma catalogação pormenorizada. Muitos manuscritos do século XVIII, por exemplo, estão dados como desaparecidos ou encontra-se na mão de antiquários e particulares. Os locais de exposição também são poucos e são, geralmente, propriedade de particulares ou movimentos associativos.
O Museu de Etnografia do Porto, encerrado desde há alguns anos, era um dos últimos espaços públicos que apresentava um espólio apreciável. Quando fechou, parte dele foi atribuído ao museu dos Biscaínhos, em Braga. Mais a sul, em Orada, perto de Santo Aleixo, pode encontrar-se igualmente um vasto espólio de bonecros, com características semelhantes aos desta última localidade, ëamontoados a um cantoí, lamenta Francisco Mota.
Neste domínio, nota positiva para o Centro Cultural de Évora, que, além de ter realizado um excelente trabalho de recuperação dos textos e dos materiais, conseguiu também formar actores que dessem continuação ao trabalho de mestre Talhinhas.
Possuidores de um vasto património, legado e adquirido, chegaram a propôr às câmaras municipais de Gondomar e de Matosinhos a cedência de um espaço onde pudessem expô-lo. O ënãoí foi justificado com a falta de infraestruturas. Mais recentemente, e vendo a sua ideia novamente recusada, desta feita pela autarquia portuense, decidiram-se pela compra de um espaço na cidade, que pretendem transformar na sede da Associação para a Divulgação da Marioneta Portuguesa. Um projecto inteiramente auto-financiado que, em princípio, abrirá por alturas do Festival Internacional de Marionetas do Porto.

Como resultado de todo o seu trabalho, publicaram, este ano, o livro ëTeatro de Bonifrates e de Sombraí. Uma obra especialmente dirigida a professores e alunos, onde se dá a conhecer um pouco da história e das técnicas de construção e manipulação de marionetas - de luva, de varão, de fios e de sombras -, e técnicas de iluminação e de construção de cenários.
As dificuldades encontradas na sua publicação reflectem o que as diversas instituições, públicas e privadas, a quem têm recorrido, pensam acerca do teatro de marionetas: ënão se interessam porque concebem-na como uma arte menorí, afirma Maria Palmira
Na sua opinião, ëo teatro de marionetas é uma expressão igualmente descurada no ensino, apesar da reconhecida capacidade multidisciplinar e pedagógicaí. Em certos países europeus, explica, o teatro de marionetas é utilizado como auxiliar educativo lúdico em áreas tão distintas como a matemática, a história, os trabalhos manuais e visuais, a música ou a língua nacional. ëEm Inglaterra, por exemplo, onde os educadores recorrem frequentemente à dramatização das lendas e dos factos históricos através deste suporteí.
O trabalho de pesquisa desenvolvido por Maria Palmira forneceu-lhe bases práticas para a elaboração de uma acção de formação para professores, decorrida há cinco anos, através do programa FOCO. Uma iniciativa que obteve bastante receptividade, ëtalvez por não existir , e que consistia na aprendizagem de técnicas de construção, manipulação e fundamentação teórica do teatro de marionetas.
Actualmente, prestam trabalho de apoio às escolas através de acções de formação isoladas e de uma exposição itinerante, que permanece nos estabelecimentos durante uma semana, e onde alunos e professores podem ver, trabalhar e perguntar. Além disso, organiza periodicamente seminários dirigidos a educadores, tentando sensibilizá-los para a preservação de um património que tem sido extremamente descurado.


Ricardo Jorge Costa


(1) O termo 'bonecro' significa actor de madeira e trapos, não devendo ser confundido com boneco, entendido enquanto simples brinquedo, mas antes encarado como um ser inanimado que ganha vida através da manipulação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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