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O Corte

 Não recupero já de memória o livro em causa, mas foi seguramente Eça de Queiroz quem, dirigindo-se ao director ou presidente da Companhia das Águas depois de esta lhe ter suspendido o respectivo fornecimento, lhe disse qualquer coisa como isto: 'V. Exa. cortou-me a água; que hei-de eu agora cortar a V. Exa. ?!'.
A cena a propósito passa-se, num tempo recente, num Instituto Politécnico nosso conhecido pela proximidade. Uma professora vê-se envolvida num assunto de avaliação final que tardava em ser publicada, e ao qual era tida e achada apenas por ser coordenadora de área, sem que no entanto o atraso na atribuição das classificações fosse seu ou lhe pudesse ser directamente imputável, sendo exclusivamente da responsabilidade de uma outra professora integrada na mesma área. O Senhor Presidente do dito Instituto Politécnico, achando que a coordenadora de área deveria sofrer pessoalmente as consequências da situação, preteriu todos os mecanismos legais susceptíveis de viabilizar tal perspectiva (averiguação, inquérito, acção disciplinar ...), vindo a proferir uma singela decisão, por escrito e assinada, no seguinte sentido: 'suspenda-se o vencimento da Senhora Coordenadora da área até que sejam publicadas as notas'. E se assim o decidiu, melhor o fez. No final do mês, já próximo da dita decisão, à professora não foi processado qualquer vencimento !
A sequência da história não é demasiado útil para o aqui em causa. Depois de muito barulho, de muita confusão, de intervenções de diversa proveniência, a professora viu reatado o seu vínculo remuneratório, talvez umas três ou quatro semanas depois do sucedido, com muito prejuízo e desgaste pelo caminho ...
A questão é que o Senhor Presidente do Instituto Politécnico não podia, pura e simplesmente, fazer aquilo que fez, assim privando a professora do seu vencimento. E este 'não podia' nem sequer é uma aproximação de boa vontade, tal é a gravidade da actuação! Estava-lhe mesmo vedada, do ponto de vista jurídico ou de qualquer outro, tal decisão, a qual quase que configura um comportamento delinquente ou terrorista !

Mas o problema é ainda outro e talvez mais complicado: se ele cortou o vencimento à professora, que havemos nós de lhe cortar a ele ? Ou seja, perante uma situação tão absurda e tão inadmissível como esta, reveladora da mais pura arbitrariedade e impunidade, a justificar, quase só por si, a demissão do dito Senhor Presidente, faltam-nos e escapam-nos mecanismos decisivos, rápidos, eficazes e sem hesitações para pôr cobro a tais dislates. Nem são seguramente os órgãos institucionais deste ou de qualquer outro Instituto Politécnico, pela sua típica e característica complacência e cumplicidade, quase sempre unânime e muitas vezes à sombra da saborosa autonomia, que nos valem em tal aflição ...

Rui Assis


  
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Rui Assis
Jurista
Rui Assis
Jurista

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