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Herberto Helder ou a arte de mudar para português outros poetas

No conjunto de razões poéticas naturais, razões de acção e dicção ou sobretudo nesse modo próprio de saber desde longe que traduzir é compreender, a qualquer nível e em todas as direcções, como proclamava Michaux, e o mal (ou o inferno) é sempre o ritmo dos outros, Herberto Helder aparece de repente com três volumes de recolha de poemas ameríndios, maias, astecas, a par de outros poemas talvez menos conhecidos de Cocteau, Lowry, Marina Tsvetaieva, Henri Michaux, Antonin Artaud e Hermann Hesse. E, tal como já acontecera em O Bebedor Nocturno, o que o Poeta de Última Ciência procura impor aos seus leitores é esse sentido mágico de a poesia ser por excelência quase intraduzível e pelas suas pessoais 'magias' tornar a palavra dos outros poetas facilmente assumida num português legível e entendível, como se a linha de água por onde escorre a essencialidade do 'discurso' poético que chega de outras paragens ou no correr dos séculos possa alcançar a expressão maior de uma prosseguida iluminação ou vocação da própria escrita.

E, pelos muitos sinais de fogo e de inocência visíveis na construção ou reconstrução dos poemas, Herberto Helder uma vez mais insiste na sua arte de emudecer pela música surda e nocturna que ressoa nesse propositado entrelaçar de outras redes textuais que desconstróem poemas que são de outros como se fossem realmente escritos por si. Porque na sua clara escolha esses poetas e poemas pertencem à sua galáxia poética ou, por caminhos entrecruzados, fazem parte das mesmas cosmogonais pessoais e tudo é feito, não porque a poesia deva ser 'feita por todos', mas antes porque se observa esse rigor literário, em trabalho depurado para encontrar a respiração ou transfiguração das palavras que melhor caibam no pretexto recriador de que sempre se parte na leitura ou decifração de um texto poético

 
Ora, se tivermos em conta essa arte ou ofício cantante que bem se nobilita e engrandece desde há muitos anos o discurso herbertiano, nessa deliberada atitude de construção/desconstrução do ritmo dos poemas, no sentido oculto, marmóreo e luminoso, de o essencial do que se diz e sente se não perder pelo fio ambivalente e algumas vezes subentendido de se dizer sempre uma e outra coisa, podemos entender como esse idêntico rigor da palavra e da escrita, pela força da imagem e emotividade discursiva do poema, se impõe na recriação destes poemas que nos chegam de paragens bem longínquas e ganham uma outra dimensão literário quando 'mudados' para português pela mão e comovida sensibilidade de Herberto Helder.
Mas, sobretudo, deve compreender-se este contributo para o melhor entendimento da poesia como a forma pessoalíssima de o autor de Os Passos em Volta, como forma de desvendar as diferentes pistas ou inquirições de uma interminável viagem marcada pela clara contenção e musicalidade dos próprios poemas e assim falar das profundas matrizes por onde escorrem os ventos antigos, as águas límpidas e os lugares da sua navegação e no entendimento legível de se saber das constelações que povoam esse cosmos sempre carregado de estrelas aldebarãs, como antes acontecera em Última Ciência.
E assim o profundo sentido poético ganha essa dimensão renovada na mágica presença da palavra que por si se impõe, reabilitada ou intencional, capaz de proclamar todos os exageros próprios do mundo pela consciência do paraíso perdido por onde o poema se decifra ou reconstrói como 'causa' pessoal. E, quase como um agitador universal que destrói ou recusa todas as decisões que o integrem ou aproximem dos outros, o Poeta de A Colher na Boca refaz esse mundo pelos céus estelares de outras cabalas, cujos contornos se decifram no desejo firme de mudança, diferença ou mutação de formas e valores, aceitando as regras ou fronteiras em que a vida se manifesta hostil e disposta para urdir outra teia por onde se atravessam as palavras sempre iluminadas, como neste poema asteca:

Quando o meu coração amadurecer,
em júbilo, quando o coração ficar maduro.
Meu deus, faz fremir os pés de milho dentro da terra,
faz crescer os pés de milho.
Fixarei os olhos no cimo da montanha de esmeralda,
em júbilo, os olhos no cimo da montanha,
e há-de nascer o senhor da guerra quando o ouro ficar maduro.

Refazendo deste modo a 'casa do poeta',onde cabem todos os poetas do mundo', a arte de mudar para português poemas tão belos que de todo nos esquecemos dos seus autores e os lemos como se de Herberto Helder fossem (e nisto não há nem pode haver nenhuma atitude subentendida de chamar a si o que passa realmente a ser seu pelo trabalho criador dessa sua mesmas 'arte de roseira'), observamos assim que o 'imaginário' herbertiano não se reduz à simples imitação ou sobreposição das realidades exteriores ou interiores, porque sempre a sua casa se habita de outros laranjais e roseiras em forma de arte aplicada e na decifração do sentido universal da condição humana ou das magias dos passos e lugares de outrora, mesmo que por empréstimo se encaminhem para essa fonte originária em que o 'bebedor nocturno' sacia a sua sede de palavras.
Por isso, na essencialidade do seu inconfundível discurso poético e na solidão habitada das palavras e dos sentidos, Herberto Helder procura no acto de ler outros poetas e assim trazê-los ou mudá-los para português num laborioso trabalho de escrita e decifração, repetimos, o que sobressai é ainda esse rigor e poder das imagens pelo mesmo ofício cantante que de livro a livro prossegue e nunca se repete, na confirmada vocação de a escrita ser, na 'poesia toda' herbertiana, um dos valores poéticos que mais se impõe pelos fios entrelaçados dos poemas ou mesmo nas deliberadas rupturas que de modo intencional estabelece no seu renovado diálogo com os leitores.

Serafim Ferreira

Herberto Helder
OUOLOF
POEMAS AMERÍNDIOS
DOZE NÓS NUMA CORDA
Ed. Assírio & Alvim / Lisboa, 1997.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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