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Recristalização

Faltavam cerca de dez minutos para acabar a aula e tinha acabado de orientar os alunos para a realização de ficha de trabalho. Há já algumas aulas para cá venho a notar um crescendo de entusiasmo com os assuntos versados na disciplina.
Após terem o primeiro teste tinham ficado bastante desanimados, pois ao que parece, os resultados não corresponderam às suas expectativas, já que segundo estas uma nota de cinco no nono ano corresponderia obrigatoriamente a, um mínimo de dezoito no décimo. Como tal não se verificou, gerou-se nestes alunos um sentimento de frustração que se começou a traduzir por um certo desconsolo e mesmo desmotivação pela disciplina. Estamos a meio do segundo período e ainda não se refizeram do choque que constituiu a transição do terceiro ciclo para o décimo ano.
Pessoalmente, estou bastante satisfeito com estes alunos, não só pelo seu enorme potencial, mas também por serem pessoas bastante dedicadas e aplicadas nos seus trabalhos. Estamos a meio do segundo período e ainda não se refizeram do choque que constituiu a transição do terceiro ciclo para o décimo ano.
Na altura, e perante o burburinho que surgiu, nomeadamente quando entreguei os testes, procurei investigar a sua causa. Até que a determinado momento a Natália explodiu:
- 'Uma pessoa estuda tanto, e no fim não sai nada no teste'
Argumentei -Não estás a ser justa, pois todos os assuntos versados no teste, foram abordados na aula.
- Está bem professor, mas não saiu exactamente como tinha sido falado na aula, eu até decorei.
Para mim, as suas classificações não constituíram grande surpresa tais as características dos métodos de trabalho destes alunos.
Saí daquela aula tremendamente inquieto, comentei com outros colegas. Alguns confidenciaram-me que com eles se passava exactamente o mesmo. Eram alunos trabalhadores, mas cujos métodos estavam desorganizados ou mesmo inadequados às exigências que se lhes estavam a fazer. Para eles estudar é decorar e colar o decorado na folha de teste. Um aluno desabafou comigo.
- Veja bem professor, decorei os exercícios de matemática todos e não saiu nenhum!
- O que é que tu esperavas? (comentei).
- Mas a professora garantiu que no teste só saíam exercícios dados na aula! (a sua voz transmitia alguma revolta).
- Se a professora disse, de certeza que o fez, mas os exercícios não podem ser exactamente iguais.
Expliquei então que quando um professor avalia um aluno, não pretende só verificar a capacidade que este tem para memorizar, mas acima de tudo, a capacidade que cada aluno tem para aplicar os assuntos versados na aula (...).
Com estas conversas que fui tendo com os alunos, consegui obter uma perfeita caracterização do problema destes alunos, que consistia no facto de estes não estarem familiarizados com situações onde tivessem que resolver situações novas, e quando a tal eram obrigados, ficavam inseguros e desistiam.
No fundo, estes alunos chegaram-me à mão, como se de massas rochosas já consolidadas se tratassem e nada haveria a fazer no que diz respeito a não ser exteriormente. No máximo, e dado a forte personalidade de que caracteriza cada um deles, restar-me-ia um papel de escultor. Polir uma face, arredondar outra (...). Olho para estas, e, identifico-as como sendo rochas magmáticas (ou ígneas) plutónicas, talvez um granito. Em termos conceituais resultam do arrefecimento e consolidação, em profundidade, de materiais em fusão. Estes constituem o magma, que tem origem em camadas bastante profundas.
A composição química de uma rocha deste tipo permite, aos geólogos caracterizar o magma que a originou. Ocorrem no entanto rochas que embora de aspecto e restantes propriedades físicas diferentes apresentam-se como tendo origem em magmas de igual composição. As suas diferenças foram determinadas pelas condições físicas de arrefecimento, consolidação e ascensão da crusta terrestre.
Os elementos químicos que originam estes granitos que são os meus alunos, em outras condições poderiam sofrer uma cristalização com outras características e constituir algo diferente do que se nos chegou às mãos.
De forma alguma posso ter pretensões em fundir e recristalizar estes alunos, pois tal processo, além de os prejudicar em termos avaliativos, poderia resultar em perdas significativas de propriedades e elementos fundamentais a sua constituição. Optei então, já há algum tempo, por ser um agente de metamorfismo.
Voltando à geologia, por definição, o metamorfismo, é um 'processo de litogénese (...), pelo qual qualquer tipo de rocha pode experimentar transformações mineralógicas e/ou texturais, mantendo-se no estado sólido, por alteração das condições de pressão e temperatura em que forma geradas' (definição extraída de A.D. Silva e outros, 'Terra Universo de Vida', 11º ano, Porto Editora).
Ao ser um agente destes não pretendo destruir e refazer, mas, apenas modificar a evolução e o desenvolvimento destes pequenos rochedos que são os meus alunos. Na prática, alterei um pouco a estratégia habitual de aula. Procurei adoptar estratégias em que se exigisse o máximo de actividade por parte dos alunos. Construí fichas de trabalho, usei também algumas que uma colega me facilitou. Nestas, os alunos são obrigados a procurar por eles as respostas para os diversos problemas que lhes são colocados. São neste momento, agentes bastante activos que não se limitam a receber informação mas chegam a ela através de construções mentais próprias e, consequentemente muito mais significativas em termos de aprendizagem individual.
Durante a resolução destas fichas, às suas dúvidas, respondo sempre com novas perguntas.
Nesta aula, um destes alunos chamou-me e apontando para o caderno perguntou-me se o que tinha escrito era o que eu queria, contrapus com uma pergunta que de momento não me recordo, mas na altura veio bastante a propósito. Sorrindo, comentou, 'lá está o professor, em vez de responder, baralha-nos a cabeça'. Até ao final da aula continuei com problematizações sobre o assunto. Instalou-se a discussão. Saí satisfeito, tal era a inquietação que se espelhava nos seus rostos. De certeza que na aula seguinte o problema base, estaria a ser resolvido. Restava-me observar a readaptação dos minerais constituintes destas rochas às pressões que foram submetidos quando das minhas questões, para ficar satisfeito. O importante para mim, como estudantes de ciências, é que saibam processar os dados que conduziram às teorias, e não tanto os postulados das mesmas.
Neste momento só consigo fazer com que o atinjam se forem sujeitos a uma pressão um pouco diferente do habitual.
Parafraseando uma professora minha, 'é nas rochas metamórficas (rochas resultantes de processo de metamorfismo) que encontramos as mais belas criações da natureza, pois é destes processos que se formam os mais exóticos minerais.

Arlindo Antunes de Sousa


  
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Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

Arlindo Antunes de Sousa

Arlindo Antunes de Sousa

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