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Os Nossos Tribunais

Recupero um estudo da equipa de trabalho do Professor Boaventura de Sousa Santos acerca da situação dos tribunais ('Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português', Edições Afrontamento, Porto), apresentado e publicado em 1996, citadíssimo na altura, mas que contém, ainda virtualidades de reflexão para alimentar muitas linhas.
O estudo é bastante extenso e exaustivo, com abordagens detalhadas ao nível da justiça penal, tratando ainda aspectos como a morosidade judicial, o acesso à justiça e as representações sociais sobre os tribunais, o direito e a litigiosidade. No vasto universo de conclusões, pretendo destacar aqui uma por via da qual se confirma que o nosso padrão de litigação judicial é um padrão clássico de recorte liberal (ainda que com algumas ressalvas importantes), predominando a micro-litigação interindividual. A esmagadora maioria das acções correspondem basicamente a um só tipo de litígio (cobrança das dívidas, normalmente de baixo valor), o que vem a constituir um poderoso factor de rotinização e de trivialização da justiça portuguesa, assim colonizada pela cobrança de dívidas e ao serviço da conflitualidade económica de pequena dimensão. Até ao nível penal, a explosão da criminalidade judicializada que ocorre a partir de meados da década de oitenta deve-se quase exclusivamente ao crime de cheques sem provisão, os quais não são mais do que formas criminalizadas de dívidas, razão pela qual o estudo fala em geminação sociológica dos dois litígios.
Mas o que me parece mais interessante na confirmação daquele perfil liberal é a constatação de que estão ausentes da intervenção dos tribunais litígios emergentes dos direitos humanos da segunda e da terceira geração, ou tão pouco a tutela de interesses colectivos e de interesses difusos solicitadas por indivíduos, por grupos de cidadãos organizados ou por associações para a defesa desses interesses. Os tribunais não têm assim qualquer actuação relevante ou significativa na resolução de litígios reais ou hipotéticos emergentes da violação dos direitos. Deixando fora de consideração os litígios emergentes de direitos laborais (que o estudo não abordou, mas que será indispensável vir a considerar no futuro), o garantismo judicial dos direitos, que assumiu nos países centrais uma grande proeminência no período do Estado-Providência e, sob outras formas, mesmo no período da crise de Estado-Providência é, entre nós, muito precário, daí resultando que a judicialização da 'questão social' tem, no nosso país, uma expressão mínima.
O trabalho de que me venho valendo foi publicado na colecção 'Saber Imaginar o Social' e há aqui qualquer coisa que tem muito a ver com o saber imaginar o futuro, sobretudo pela percepção dos caminhos que existem mas que continuam por percorrer.

Rui Assis


  
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Rui Assis
Jurista
Rui Assis
Jurista

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