MAIS de cinquenta anos passados sobre a revelação em livro, a poética de Eugénio de Andrade, na clara solaridade vocabular que em todos os seus poemas se patenteia com exuberância, tem reincidido nos últimos livrosna mesma sinceridade e brevidade expressivas que fazem de toda a sua obra essa morada onde pairam sempre as sombras, passos e lugares que foram da infância e adolescência, de peregrinação e de vagabundagem por muitas outras paragens. Por isso, retomar o diálogo com o Poeta de Mar de Setembro, mesmo na insistência de uma concisão vocabular que o fazem mergulhar por vezes em certas imagens quase comuns ou de menor forma expressiva, de algum modo estabelecer o convívio com uma das vozes mais coerentes da poesia desta segunda metade do século XX português. Na verdade, cada novo livro de Eugénio de Andrade, sendo ainda e sempre um mesmo e outro livro, prolonga ou retoma esse discurso cristalino e sincero, breve e incisivo, de saber guiar o leitor pelos lugares obscuros, 'branco no branco' (mesmo na aparente contradição expressiva e poética), que traz consigo essa tradição lírica portuguesa de Bernardim, Camões ou até dos primeiros trovadores medievais. Mas esse discurso, sendo idêntico e sempre diferente, ainda o mesmo tom e modo de o Poeta saber falar da vida e do mundo, dos pessoas e das coisas, dos olhares e dos sentimentos, nesse dizer por dizer ao rés das águas límpidas ou dos rios e lugares de diversa peregrinação, na persistente e decantada claridade poética: Toda a ciência está aqui, na maneira como esta mulher dos arredores de Cantão os dos campos de Alpedrinha rega quatro ou cinco leiras de couves. E, por essa repetida 'arte poética', Eugénio de Andrade, na brevidade e sinceridade do verbo, na emotiva e sempre renovada forma de abordar ou olhar o mundo, reencontra ou redescobre, mesmo num lódão perto da casa onde morara, num Porto que desde há muitos anos lhe pertence por direito de íntima coabitação, esse sentido solar da sua própria efemeridade, no fazer rente ao dizer e na carga simbólica e sentida das palavras com que todo esse seu 'verbo' poético se tece e enaltece: Também a poesia é filha da necessidade - esta que me chega um pouco já fora do tempo, deixou de ser a sumarenta alegria do sol sobre a boca. Por isso, na avalanche metafórica e expressiva de um propositado e claro rigor de expressão, uma poesia que arrebata e comove, destituída de sombras ou inibições, liberta de ironias ou de sarcasmos, mas, como declara Jorge de Sena, todavia'uma poesia aberta com generosidade a todos os anseios de libertação, sempre concebida num bom gosto que defendeu o poeta dos exageros do neo-realismo, do surrealismo ou do barroquismo hispânico', alcançando, no termo dessa sua pessoal experiência e aventura poética cumprida em largos anos, uma plenitude que faz a poesia de Eugénio de Andrade ser hoje verdadeiramente das mais lidas e admiradas por amplas camadas de leitores. Talvez porque no rigor prosseguido no fio calmo dos anos, o que o Poeta de As Mãos e os Frutos deseja acima de tudo é que, pela simplicidade formal e pela transfiguração da sua expressão e clareza, essa solidariedade se confirme, de livro a livro, na cadência dos próprios versos, nessa inocência quase pagã sem deuses nem excessos, no cantante enaltecer do corpo, da terra e da vida, ou como já observara Eduardo Lourenço poder ainda dizer-se que'nenhum poeta como Eugénio de Andrade escreveu poesia de tal modo convincente com as figuras que lha sugerem e o obrigam a cantá-las, como se tudo estivesse certo no universo e só nós, no fundo, estivéssemos a mais'. E assim, na intencional insistência dessa música vital que perpassa em cada poema de Eugénio de Andrade, saber-se que o rumor do mundo se constrói ainda e sempre de palavras, que nessa poética carregam todo o peso da memória, pelas sombras e lugares de um inalterável peregrinar, em trajecto que é único e singularíssimo na poesia portuguesa do nosso tempo, e ter sabido desde longe andar em boas companhias: Homero, Platão, Whitman ou Blake, Lorca, Machado, Montale ou Pessoa. E uma vez mais proclamar num dos poemas emblemáticos de Rente ao Dizer: materna casa da alegria e da mágoa; dança do sol e do sal; língua em que escrevo; ou antes: falo. Serafim Ferreira OBRAS DE EUGÉNIO DE ANDRADE Fundação Eugénio de Andrade / Porto. |