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Educação escolar e exclusão social

A ESCOLA COMO FONTE DE INJUSTIÇA SOCIAL?

Dando continuidade à abordagem sobre as diferentes formas de exclusão social cada vez mais presentes neste final de século, a entrevista deste mês debruça-se sobre as novas relações entre escola e mercado de trabalho. Segundo Stephen R. Stoer, investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto, este binómio encontra-se numa fase de renegociação e implica que a escola não simplesmente reproduza mas antes produza activamente a exclusão social latente.

De que forma surge o conceito de exclusão social latente?

A escola que chamamos 'para todos' é algo que se desenvolve desde o fim do século XIX e ao longo do século XX em países como Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha, a antiga Prússia e a Áustria. Os países da Europa central começaram antes. É uma escola sob um contrato social estabelecido entre essa escola para todos: muitas vezes nascida na igreja ou na fábrica é, nessa altura, estatizada. Torna-se uma escola oficial, do Estado-nação, e acompanha o desenvolvimento do capitalismo industrial. Encontramos uma escola meritocrática, que se desenvolve com a preocupação de proporcionar o acesso a todos na base da igualdade de oportunidades. Este princípio é um mecanismo que faz com que haja uma maneira verdadeiramente nobre de distribuir os recursos e os talentos pela sociedade. Será, portanto, não uma sociedade baseada na época feudal, em direitos herdados, mas uma escola onde os direitos são para todos na base da capacidade individual.
É este estatuto adquirido que guia esta escola ao longo de quase todo o século XX, existindo, apesar disso, uma certa tensão entre o seu desenvolvimento e o próprio capitalismo industrial, muitas vezes expressa através do insucesso escolar - caracterizado, neste contexto, pelo facto de certos alunos não atingirem o sucesso. A interpretação de sucesso pode ser diferente: a escola inglesa, por exemplo, decide na segunda metade deste século abolir as passagens condicionadas através de notas atribuídas nas diferentes disciplinas. Em vez disto, decide-se pela passagem automática de todos os alunos de forma a não prejudicar os próprios alunos e o seu desenvolvimento - pelo menos é isso que se diz -. Noutras escolas e em outros sistemas, por exemplo em Portugal, a atribuição de notas acaba por ser prejudicial no que respeita à transição de ano dos alunos. Mas este sucesso é relativo porque os alunos sabem que ao sair do sistema escolar, desta escola para todos, irão ter um lugar na estrutura ocupacional. Desenvolvendo-se num contexto de expansão económica, especialmente nos anos 'dourados' de 50 e 60, há uma correspondência que, apesar de não ser perfeita, é relativamente conseguida entre a estrutura ocupacional e os estabelecimentos de ensino. Um aluno pode chumbar várias vezes e até sair da escola quando atinge a idade limite, sem ter concluído os nove anos de escolaridade, mas terá sempre um lugar mais ou menos garantido nesta estrutura ocupacional hierarquizada.
Depois chegamos a uma outra situação a partir da década de 70, onde a tecnologia industrial começa a assumir outras características, onde há uma crise tanto do sistema económico como do próprio estado, particularmente sentido a partir da crise petrolífera. Assitimos a uma mudança quantitativa e qualitativa e encontramos uma estrutura ocupacional que começa a mudar de forma: contratações menos duradouras, trabalho precário, flexibilização do trabalho. É o fim do chamado 'Fordismo'. Aquele modelo de escola que se desenvolveu ao longo do século XX começa, agora, a sentir uma certa desarticulação entre ela própria e o tecido económico e social. A relação escola-trabalho torna-se fundamental, ao contrário da visão de escola-democracia em países como Portugal, que tentavam tornar a escola meritocrática mais democrática. Nos anos 80 volta-se às questões económicas e à preocupação de uma escola que torne os alunos 'empregáveis', um termo que reaparece agora nos anos 90. Os alunos precisam de estar equipados para entrarem no mundo do trabalho e o problema passa mais por resolver essa desarticulação, que se tornava cada vez mais evidente, entre a escola e a estrutura ocupacional em mutação.
Na primeira situação temos ,assim, um princípio de igualdade de oportunidades no acesso e um problema de insucesso baseado na tensão existente entre um sistema económico, muitas vezes acusado de promover desigualdades, e uma escola assente nesse sistema. A solução para o insucesso escolar passava, aqui, pela educação compensatória. Aos olhos do professor os alunos são todos iguais e o que ele vai tentar fazer é promover uma educação que só tome em conta as características cognitivas dos alunos e não nenhuma outra característica cultural, de idade, de sexo, etc..., fazendo com que a avaliação seja feita através de progressos em termos de raciocínio e de acordo com um padrão definido pelo professor.
Com a globalização da economia e a flexibilização do trabalho, a escola, que anteriormente reproduzia uma desigualdade que, em si, estava fora do sistema escolar, encontra uma desarticulação da escola face a esta economia - e isto torna-se cada vez mais notório na maneira como as pessoas falam sobre este assunto -, que começa a produzir exclusão social. Uma exclusão social latente, porque se torna um factor real o aluno sair da escola sem as competências necessárias para viver nesse mercado de trabalho mais precário e flexível, onde é preciso aprender enquanto se está a trabalhar, etc...

Mas estará a estrutura social preparada para lidar com esta situação?

Está, até certo ponto. É interessante verificar que na constituição portuguesa de 1976 está consagrado aos alunos o direito ao acesso e ao sucesso na escola. Neste sucesso está implícito o que irá suceder nos anos 80: não basta ter acesso à escola, é preciso ter sucesso através da escola. Ou seja, se uma pessoa acede apenas à escola, então sai sem essas competências necessárias para garantir que não caia em formas de exclusão social. A escola passa a ter essa dupla obrigação e modifica a concepção de resolução do insucesso. Já não na base de educação compensatória, como acontecia, mas através da educação multicultural, através de uma educação atenta às diferenças culturais.

Quais são essas competências e capacidades a que se refere?

É muito discutível. Nos anos 80 houve debates muito acesos sobre esta matéria, e eu participei em alguns, centrados sobre se devia ou não reintroduzir os cursos técnicos e profissionais e os actuais cursos tecnológicos no ensino básico e secundário.
A nossa escolha, naquela altura, era entre educar um povo ou formar uma elite. A grande preocupação dos educadores, não tanto como sociólogos, historiadores ou gestores, era que houvesse uma escola básica verdadeiramente básica e uma escola obrigatória que fosse realmente obrigatória, através do investimento nos jardins de infância e nas escolas do 1º ciclo, bem como nos 2º e 3º ciclos. A preocupação de outros era investir mais dinheiro nas universidades e no secundário, um desenvolvimento efectuado de 'cima para baixo' e não o contrário.
Hoje em dia, nos anos 90, a situação modificou-se porque se deu início a programas como o 'Escola para Todos' e existe uma nítida preocupação com o 1º ciclo e com o pré-escolar. A ênfase que se colocava no ensino técnico-profissional e no profissional já não tem a mesmo peso. As escolas profissionais continuam com uma existência bastante precária, apesar de alguma implantação importante, e hoje em dia quase todas as organizações patronais defendem a educação básica como muito importante. Ou seja, em dez anos criou-se um consenso acerca da necessidade de uma escolaridade mínima obrigatória em Portugal. Hoje em dia já não é uma questão. Nos anos oitenta ainda era.

Mas quais são as medidas de carácter prático, no seu entender, que se podem introduzir no sistema de forma a contrariar essa tendência?

O que temos defendido - quando falo no plural refiro-me ao grupo de investigadores com quem desenvolvo um trabalho de parceria - é a educação multicultural. Mas não uma educação multicultural que se apresente como uma repetição da educação compensatória. Lutamos por uma educação multicultural que ponha em causa o que apelidamos de pluralismo cultural benigno, isto é, que acaba por não ir mais além de soluções de 'folclorização' da diferença na escola, em vez de um pensamento pedagógico e sociológico sério sobre como lidar com a diferença na escola.
É muito complicado um professor estar na sala de aula atento a vinte e oito alunos. Como é que neste caso se pode tomar em conta a diferença? É uma tarefa gigantesca.

Uma educação multicultural dirigida essencialmente às minorias étnicas?

Não. A preocupação é com as diferenças culturais. O nosso grupo trabalhou com escolas em regiões como Barcelos ou Vila das Aves, onde existe uma cultura rural ou semi-rural em contraste com a cultura urbana, uma cultura masculina em contraste com a feminina, bem como, claro, escolas onde as culturas estão associadas às minorias étnicas. Uma multiculturalidade, portanto, em termos étnicos, de género, de cultura, de classe social e de idade. A cultura no sentido mais lato do termo.
É uma atitude crucial, porque é o cruzamento entre estas diferentas culturas, entre as diferentes formas de lidar com a diferença, que se revela fundamental para o professor na sala de aula. Temos escolas aqui no Porto, como por exemplo São João de Deus e ou Biquinha, para não falar noutras, onde encontramos todas estas culturas praticamente lado a lado, na mesma sala de aula. A nossa proposta é a de uma educação multicultural que seja capaz de se desenvolver através do que designamos por produção do conhecimento porque, na nossa opinião, o professor não é apenas um transmissor de conhecimento, é igualmente um produtor de conhecimento.
Esta produção de conhecimento pode desenvolver-se de duas maneiras: através de uma prática etnográfica (interesse pela origem social e cultural do aluno, do local onde habita, como vive, quais as suas relações sociais dentro da sala de aula, etc...) e de soluções adequadas às diferenças, isto é, de um trabalho sobre o programa curricular que se dirija não só para o aluno médio, branco e católico, mas que apele igualmente aos outros grupos culturais presentes na sala de aula.
É uma tentativa de dizer que o professor pode ser simultaneamente investigador e professor, que pode desenvolver um pensamento que é simultaneamente rápido, em questões que necessitam de uma resolução instantânea, de viver sob um ambiente de trabalho entre os colegas que participam no mesmo processo pedagógico e, ao mesmo tempo, um tipo pensamento que se rege por preocupações em imbuir os colegas e os alunos em processos de investigação, envolvendo um trabalho teórico e de índole metodológica, com um certo rigor e paciência, persistência, que não faz necessariamente parte do trabalho habitual do professor na sala de aula. É possível ligar estes dois tipos de pensamento.

Mas que medidas de alcance prático será possível tomar para se evitar a exclusão social na escola de hoje?

Eu estou bastante optimista neste momento porque, apesar das muitas críticas, eu acho que os territórios educativos, o projecto de autonomia, gestão e administração das escolas e o próprio projecto de disciplina, que está a sofrer alterações, e toda uma série de diplomas que estão na forja, encontram-se em consonância com o programa do governo - toda a ênfase posta na parceria, na descentralização, nos territórios, em projectos educativos, que não são apenas da escola mas também da comunidade. Sinto optimismo em relação a estas medidas porque parecem de facto constituir possíveis soluções com capacidade de mobilização junto dos professores.
As experiências dos territórios educativos mostram que os professores estão a participar neles. Mesmo no caso destes novos agrupamentos que começam agora a surgir, os professores mostram-se mais entusiasmados e ficam até mais tarde na escola - uma coisa inconcebível até há uns anos atrás - enfim, todo um trabalho de cooperação envolvendo escolas do 1º ciclo com escolas do 2º e 3º ciclos, que começam também a incluir os jardins de infância. Toda esta troca de conhecimentos de diferentes níveis parece-me crucial e muito positiva. Depois há esta preocupação com a educação multicultural que apesar de uma certa folclorização, como atrás referi, penso trazerem iniciativas interessantes nesta área, já que as próprias pessoas que estão a trabalhar nos projectos multiculturais começam a estar em contacto com experiências similares na europa.
Todo este trabalho resume-se a uma seguinte ideia: há duas maneiras de promover a colaboração e a cooperação ao nível das escolas, entre os professores e as comunidades. Uma é através de um conceito que se poderá designar por 'partenariado', um termo provavelmente importado do Inglês e introduzido através dos programas europeus, onde existe um esforço formalizado e uma colaboração além fronteiras que inclui parte da rede internacional. O outro conceito é o de parceria, o conceito português tradicional de cooperação, onde encontramos uma colaboração informal, não tanto como no caso do partenariado, de 'cima para baixo', mas de 'baixo para cima'. A parceria começa por um grupo de colaboradores focalizados num problema específico, mas que o transportam para fora de um âmbito localizado através da sua autenticidade e do seu enraízamento nos costumes locais, ligando-se, desta forma, ao conceito de partenariado.
Temos portanto uma situação de oscilação entre partenariado e parceria, onde as escolas e as comunidades locais conseguissem, por um lado,' serem alfabetos', digamos assim, na utilização dos fundos, da linguagem e de tudo o que é necessário para fazer a ligação com o exterior, com a europa e com outros continentes - nomeadamente com a América do Sul e em particular com África -, e por outro lado envolvessem uma partilha do poder e uma negociação através da comunicação, significando muito mais do que a simples imposição de alguns que sabem sobre aqueles que não sabem.

Dada a relação directa entre a escola e o mercado de trabalho, não seria importante envolver os agentes económicos?

Claro. Mas nas parcerias e nos apartenariados os agentes económicos são cruciais. Aliás, as velhas dicotomias entre capital e trabalho não há dúvida que estão ultrapassadas. Não sejamos ingénuos perante a origem do poder. Mas também não podemos continuar a funcionar como se o conceito de classe não estivesse, num certo sentido, a evoluir para um conceito de minoria ou para um conceito de cultura.
Há uma abertura em termos de colaboração que, de facto, não existia na sociedade portuguesa há algum tempo. Existe, portanto, uma situação onde os agentes económicos, os agentes culturais e os agentes educativos, da segurança social e das autarquias podem colaborar, colocando para trás dicotomias que antes eram determinantes no relacionamento entre estes agentes. Há uma nova situação que torna isto possível.E vemos exemplos disto todos os dias. Seja ao nível formal, através do partenariado e das inicativas que estão a ser tomadas por alguns empresários, seja ao nível local onde encontramos projectos onde existe uma envolvência dos empresários com os agentes políticos locais, culturais e educativos.
Claro que em todo esta discussão eu estou a ver o lado positivo. Podia analisar-se também o lado negativo e muitos problemas que ainda subsistem e que têm de ser atacados. Mas para dar uma pincelada acerca da maneira como encaro esta questão, prefiro esta visão positiva.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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