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Ninguém pode negar que Reflexão sobre o 'Regime Disciplinar dos Alunos'

(Projecto de Diploma Legal)

Ninguém pode negar que muitas crianças (alunos), durante o seu processo de crescimento e por diversas razões, esbarram com dificuldades de vária ordem, quer no relacionamento, quer na comunicação com os outros, exibindo comportamentos considerados desajustados, perturbadores ou mesmo associais. Estes, não raro têm a sua origem, na própria organização físico-intelectual do indivíduo (problemas cerebrais, deficiência intelectual, anomalias genéticas) e então explicam-se antes de mais, pela própria doença ou imaturidade do aluno. Intrínsecas ao aluno, outras causas existem ainda, como sejam tentativas de chamar a atenção do professor, inadaptação à escola ou ao próprio docente. O contexto comunitário, cultural e familiar em que a criança vive tem igualmente muita influência no aparecimento destes comportamentos; conforme expressa Orlando Lourenço (l) (1996, p.99), o pai ou a mãe estão a contribuir decisivamente para a prevenção de comportamentos anti-sociais do seu filho, quanto menos este 'tiver de viver angustiado com os problemas de emprego, saúde e habitação'. E se é verdade, que crianças com comportamentos inadequados, existem em todas as classes sociais, também é inegável que se destacam pelo seu número e gravidade, nas camadas mais baixas da sociedade. As carências económicas e culturais, o alcoolismo e a droga, bem como a proveniência de minorias socioculturais favorecem o aparecimento e agravamento destes comportamentos. E por aqui se deduz, que embora o tratamento e a prevenção destas atitudes dos alunos, extravase a própria instituição escolar, cabe a esta a espinhosa missão, de conseguir ambientes afectuosos e de calmaria, onde esses comportamentos se amenizam ou mesmo se modifiquem.
Casos infelizmente existem também, em que é a própria escola a principal responsável pelo aparecimento de comportamentos inadequados nos alunos. Assim escolas onde os professores não supervisionem as várias dependências escolares e não falem com os alunos, não se configurará neles a consciência mútua do cumprimento e aplicação das regras expressas no Regulamento da Escola. Aulas mal organizadas, leccionadas por docentes exibindo comportamentos pouco dignificantes em relação aos alunos, tornam estes indisciplinados e fazem neles desenvolver a revolta, a inadaptação e atitudes desviantes. Vem a propósito referir Kounin (1970), que citado por Isabel Sanches (1996) (2), estabelece uma relação proporcional directa entre a capacidade para a gerir as aulas e o aparecimento de comportamentos perturbadores nos alunos. Há assim, uma grande diferença entre os professores, no modo como planificam e gerem o seu tempo de aula. Os professores designados pela cita autora de 'bons gestores', conseguem formas de prevenir a ocorrência de comportamentos inadequados nos seus alunos e conseguem por isso mesmo mantê-los atentos e motivados. Estes docentes, vão ao ponto de elaborarem contratos pedagógicos com osalunos, nos quais inserem um grupo de regras axiologicamente fundamentadas, para cujo cumprimento fazem apelo ao reforço positivo. E, ninguém tenha dúvidas, que aceitar pedagogicamente a regra é já meio caminho andado para o seu cumprimento. Como afirma Maria Teresa Estrela (3) (1994, p. 52) '...se a regra não é considerada como legítima, ela surge aos olhos do aluno como uma arbitrariedade do professor e só será respeitada coercivamente.' Também sabemos, que fazer cumprir a lei pela punição, é uma prática pedagogicamente inaceitável e uma estratégia, felizmente cada vez mais em desuso. Sobre este assunto Baudilio Martinez (4) (1993, p. 37) afirma: 'Uma educação baseada no castigo não merece tal nome.' E Orlando Lourenço (1996, p.95, idem), ainda a este respeito refere: 'A punição é uma óptima coisa...mas apenas na condição de não ser utilizada.'
É por aqui que queremos situar o presente estudo, que se ambiciona ser mais um contributo na reflexão, debate e sugestões, que as comunidades e responsáveis escolares em geral, estão a realizar, até fim deste mês de Janeiro, sobre o Projecto de Diploma Legal relativo ao 'Regime Disciplinar dos Alunos'. Esta apreciação, é fomentada, pelo próprio Gabinete da Secretária de Estado da Educação e Inovação (o que muito nos apraz) e destina-se a substituir a Portaria nº 679/77 de 8 de Novembro.
E como o tema é a Disciplina nas Escolas, não resistimos à tentação de transcrevermos, algumas determinações do ' Despacho Normativo nº 14.723.001', da autoria de Daniel Sampaio (5) (1994, pp.237 - 238):

'1- É obrigatório saudar todos os dias, directa e individualmente, cada aluno, tratando-o pelo seu nome próprio.

2- E obrigatório que nas fichas de avaliação passem a constar apenas as apreciações positivas das capacidades e qualidades humanas dos alunos, sendo os aspectos negativos da avaliação tratados verbalmente, em diálogo confidencial, entre professor e aluno.

...6- É proibido, em qualquer circunstância, pôr alunos fora da aula, suspender turmas ou marcar faltas disciplinares.

...8- É obrigatório que os professores ajudem a descobrir o que cada aluno quer ser quando for adulto e passe a escalonar as disciplinas por ordem decrescente de valor, tendo em atenção que 'nucleares' são as necessárias para alcançar esse objectivo.

9- É obrigatório ensinar, uma vez por mês, uma 'coisa' que a maioria dos alunos tenha interesse em saber, independentemente do programa, ou criar as condições para que os alunos a possam aprender.

10- É obrigatório que o delegado de turma dê conta aos professores, dos alunos que evidenciam sinais de tristeza ou dificuldades, para que o professor os possa receber discretamente com intimidade e sigilo para os ajudar. '

É neste enfoque geral, que se situa esta reflexão sobre este Projecto de Diploma, com o qual, na generalidade, estamos de acordo no paradigma educacional, que o inspirou. Se os 'comportamentos perturbadores', segundo é referido, vão ser 'assinalados e individualizados', se a família (ou o próprio aluno-maior) vai partilhar em toda a intervenção disciplinar, se vão ser adoptadas medidas de 'reforço positivo' e se à Escola vão ser dadas as 'condições necessárias ao desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem'... sem dúvida que toda esta filosofia educacional, acaba por a todos convencer e até mesmo apaixonar.
O presente Projecto de Diploma, no entanto, parece mais destinado às Escolas do 2º, 3º Ciclo e Secundárias, não tendo na devida atenção (mais uma vez!) e apesar das especificidades do Art.º 35º, as situações reais em que se continua a processar o Ensino no 1º Ciclo (e na Pré-Primária); nomeadamente os problemas ligados à rede escolar, à administração e gestão, à precariedade dos apoios educativos, aos serviços de psicologia e orientação, à saúde escolar, à dependência e asfixia das autarquias, ao parque escolar, à própria monodocência, etc. E é aqui onde, pontualmente, começam as nossas dúvidas...
E consensual e tácita a aceitação dos 'Direitos Gerais dos Alunos', bem como dos seus 'Deveres Gerais', delineados nos Artigos 4º, 5º, 6º, 7º e 9º. Mas não podemos no entanto ignorar, que muitos desses Direitos, estão directamente ligados e mesmo até dependentes, do cumprimento dos Deveres e das Obrigações Gerais do Estado, em relação à escola e aos professores. E todos sabemos a enorme precariedade com que se debatem muitas das nossas escolas, bem como o rol das necessidades a todos os níveis, de que se queixam os docentes, no seu dia a dia!
Seguindo ainda o raciocínio de Daniel Sampaio (1994, idem), não se entende muito bem a 'ordem de saída da sala de aula'. Achamos que esta 'medida cautelar', não se encontra devidamente esclarecida nos Artigos 22º e 39º. Sabemos, que cada vez é mais difícil, no dia a dia, entender o que são na prática 'situações que, fundamentalmente, impeçam o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem' (Medida Cautelar - nº 1 do Art.º 22º). É que, se deixarmos completamente em aberto este entendimento, ao livre arbítrio e subjectivismo de alguns, estaremos a por em risco a construção da designada Escola Inclusiva (6), que tanto apregoamos, pois não irá demorar muito, que a alunos com Necessidades Educativas Especiais (não raro coincidentes com os que possuem comportamentos inadequados), lhes seja simplesmente dada a 'ordem de saída da sala'!
Já no que respeita à 'Qualificação do comportamento', achamos também muito vagas e abstractas as definições de 'comportamento leve', expressas nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do Art.º 14º. Deveria conseguir-se uma outra tipologia mais concreta e objectiva, que não se prestasse igualmente a interpretações subjectivas. Pensamos também, que os comportamentos 'grave' e 'muito grave', referidos em seguida, têm as suas primeiras radículas, que entretanto se foram ramificando, neste primeiro 'comportamento leve'. Será então nesta primeira fase de 'comportamento leve', que se deveria entrar de imediato em ' alerta máximo', prevenindo e empregando todos os esforços, para não deixar a situação evoluir, para os comportamentos seguintes. É aqui onde mais se deveria investir, até por poupança nos comportamentos seguintes. E é sobretudo já aqui, onde todos (muito em especial os serviços de psicologia e orientação, a saúde escolar e os técnicos dos serviços especializados dos apoios educativos), deveriam prontamente actuar, para uma Intervenção Pedagógica, que deveria anteceder, ou até evitar, a aplicação das 'medidas educativas disciplinares' das alíneas a), b) e c) do nº 1 do Art.º 15º.
Esta Intervenção Pedagógica, consistiria essencialmente e com base na, filosofia educacional apontada por Robert Rutherford e João Lopes (7) ( 1994), na adopção das seguintes medidas:

- Estudo de Caso do referido aluno, com tipificação dos seus comportamentos inadequados.

- Observação, verificação, registo e quantificação dos seus comportamentos referidos (8).

- Tratamento e interpretação dos dados recolhidos.

- Apuramento das causas despoletadoras dos comportamentos observados.

- Estratégia geral de modificação comportamental.

E só nesta última medida, da modificação comportamental, é que admitimos que se possam então incluir as citas 'medidas educativas disciplinares' das alíneas a), b) e c) do nº 1 do Art.º 15º. Porém, sem antes se descurarem, outras técnicas de modificação de comportamentos sem dúvida muito mais agradáveis, mais pedagógicas e eficientes e em nada punitivas, referidas também por Rutherford e Lopes (pp.63-109, idem):

- Reforço Social.

- Gestão de contingências.

- Contratos compartimentais.

- Sistemas de créditos.

- Ensino positivo.

- Autogestão

Quedámo-nos finalmente a reflectir um pouco, na medida disciplinar 'transferência de turma, pelo período máximo de cinco dias'. Não nos parece muito eficiente e até pedagógico. Não será tentar combater a indisciplina pela inadaptação escolar?! No entanto se a turma hospedeira for devidamente integradora, onde alunos e professores, logo à partida não criem expectativas negativas do aluno cadastrado... (o que nos parece difícil!), a transferência deverá, caso seja essa a vontade do aluno, ter então carácter definitivo.
Concluímos, lembrando que não é numa pseudo e aparente normalidade, presente em regimes coercivos, que se situa o sucesso educativo e a nossa própria evolução. Esta, é sobretudo um círculo aberto, não encerrado por isso à mudança e à diferença. Como afirma Edgar Morin (9) '...somos um produto 'desviado' da história do mundo; isto permite-nos compreender que a evolução não é qualquer coisa que avança frontalmente, majestosamente, como um rio, mas parte sempre de um 'desvio' que começa e consegue impor-se, se torna uma grande tendência e triunfa.'.
Então, as diferenças (mesmo as comportamentais) são imprescindíveis para a nossa evolução e se nos fecharmos a elas, encerramo-nos na nossa própria limitação e egoísmo. É este o risco que a Escola deve evitar!

Eduardo Ribeiro Alves

Professor do 1º Ciclo(Especializado em Educação Especial)

Janeiro de 1998


REFERÊNCIAS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1- LOURENÇO, Orlando M -Educar hoje crianças para o amanhã. Porto Editora.1996, 206 p.

2- SANCHES, Isabel Rodrigues - Necessidades Educativas Especiais e Apoios e Complementos Educativos no quotidiano do professor. Porto Editora, 1996, 93 p.

3- ESTRELA, Maria Teresa - Relação pedagógica, disciplina e indisciplina na aula. Porto Editora, 1994, 126 p.

4-MARTINEZ, Baudilio - Os castigos na Educação. Porto Editora, 1993, 77 p.

5- SAMPAIO, Daniel - Inventem-se Novos Pais - 7ª Edição. Editorial Caminho, Lisboa 1994, 249p.

6- De harmonia com a Declaração de Salamanca foi de 7 a 10 de Junho de 1994 .

7- RUTHERFORD, Robert; LOPES João - Problemas de Comportamento na sala de aula, Identificação, Avaliação e Modificação. Porto Editora, 1994, 139 p.

8 - Utilizando o tipo de registo mais adequado aos comportamentos: contínuo, de frequência, de duração, por intervalos de tempo, amostras periódicas, etc.

9-MORIN, Edgar - 'O Desafio da Complexidade para uma Reforma do Pensamento.' Conferência promovida pela Escola Superior de Educação. Jean Piaget - Macedo de Cavaleiros, l8 de Abril de 1996.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Eduardo Ribeiro Alves
Professor especializado em Educação Especial
Eduardo Ribeiro Alves
Professor especializado em Educação Especial

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