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Buracos na Estrada

As aulas tinham começado à cerca de quatro semanas. No 11 º Ano, encontrava-me a abordar o estudo de conceitos relacionados com os mecanismos bioquímicos que ocorrem durante a fotossíntese, assunto; bastante complexo para o nível etário, razão pela qual tinham começado por uma abordagem que se processou de forma bastante lenta. O sucesso deste estudo estava dependente da correcta apreensão de todo um conjunto de noções preliminares por parte dos alunos, as quais eles teriam que saber aplicar em novas situações a qualquer momento. Estas referem-se aos conceitos de ATP, ADP, Transportadores de electrões entre outros.... Para tal não avancei com o estudo enquanto não me certifiquei (dentro da medida do possível dadas as condicionantes resultantes da dimensão do programa) que estes conceitos estivessem apreendidos.
Entrei na sala confiante que naquele dia 'terminaria o estudo da fotossíntese. Comecei a aula relembrando o assunto que estava a ser estudado; 'projectei' um acetato onde estava representado um esquema que sintetizava os conceitos estudos até aquela aula. Comecei então a questionar os alunos no sentido de o interpretarem. Para tal era imprescindível que os alunos tivessem presente os conceitos anteriormente referidos.
A primeira aluna a ser solicitada, ficou, simplesmente estática, o corpo hirto e estático, os olhos enormes e redondos sobressaíram de sobremaneira do seu pequeno e esquálido rosto. Corou e baixou a cabeça, como se isso bastasse para eu a esquecer e transporta a questão para outro colega. Insisti reformulando a questão. E, nada!
Perante nova insistência reparei que esta aluna, não estava a responder por não compreender minimamente o que estava a ser estudado, além de, constatação feita à posteriori, não dominar minimamente os conceitos preliminares necessários. Naquele momento senti-me frustrado, todo o trabalho que despendi na preparação daquela unidade programática, materiais audiovisuais, fichas de trabalho (...) pareciam ter sido deitados fora. E tudo porque a aluna, ou não acompanhou devidamente o assunto, não estudando de forma a consolidar os conceitos que se iam acumulando, ou não soube expor devidamente alguma dúvida e já há várias aulas que não compreendia minimamente o que estava a ser estudado. Apetecia-me descarregar sobre a pequena toda a minha carga emocional, 'não estudas nada... como é que vocês podem aprender alguma coisa senão acompanham a matéria com estudo feito em casa...já não são alunos do terceiro ciclo, no secundário é diferente'(...). Isto dito em tom de grande irritação e fazendo aquilo a que se chama uma 'cara de mau'. Às vezes acontece. Mas e se o problema fosse meu, se os meus materiais estivessem a falhar, aquilo que resulta muito bem numa turma pode falhar redondamente noutra.
Umas largas semanas antes encontrava-me a passear de carro nas proximidades das lagoas de Quiaios. A estrada, embora estreita, era rectilínea sendo por isso convidativa à velocidade. O carro uma vez engatado em quinta velocidade rapidamente embalava para velocidades para uma velocidade considerável.
Eis que de repente, enorme buraco, qual cratera lunar, se me depara pela frente. Instintivamente meto o pé no travão. Contudo não consigo evitar que a transposição de tal obstáculo se processe de forma violenta. Os amortecedores resistem sem contudo terem perdido umas centenas, talvez milhares de kms de vida, tais as sequelas que se adivinham aí registadas. Abrandei e prossegui em marcha muito mais lenta. A partir daquele local a estrada estava pejada de imensos e inesperados obstáculos que a continuarem a ser transpostos a velocidade do primeiro, poderiam provocar danos inesperados no móbil que me transportava.
No dia em que entrei naquela aula, sentia-me a conduzir numa auto- estrada. As velocidades de força tinham sido superadas, o veículo ganhara velocidade e agora era só deixá-lo correr e esperar pelo fim daquela enorme recta para abrandar, e fazer a curva que, segundo o meu desejo antecedesse outra recta. No entanto, surgiram estes incómodos e até ao momento imprevistos buracos.
Na minha aula também surgiram, contra a minha previsão e vontade, estes obstáculos, que afinal de contas, surgem constantemente. Nesta situação praticamente tive de parar e reiniciar o processo, ou seja, engatar de novo a primeira, depois a segunda .. . A velocidade inicial nunca mais foi atingida com a despreocupação com que o tinha feito de início. As cautelas eram muito maiores, de forma, a que de ali para a frente fosse eu a surpreender os buracos, já em marcha lenta, e tentando sempre abordá-los sem ter de parar, o que facilitava a próxima aceleração, além de os danos na máquina serem praticamente inexistentes.
Na minha prática profissional e por diversas razões, isto tem acontecido mais vezes. Neste caso concreto a razão principal tinha a ver com a extensão de um programa que em termos de extensão se encontra totalmente desadequado da realidade que é o processo de 'Ensino/Aprendizagem'. A minha preocupação era única e simplesmente cumprir o número de aulas preestabelecido pelas orientações ministeriais. Os meus materiais de apoio estavam bem feitos, a estratégia era a adequada, mas, por muito boa que seja a máquina, é impossível conduzir a velocidades próprias para pista na estrada esburacada que é este processo de 'Ensino/Aprendizagem'. É possível, mas muitas peças ficarão pelo caminho, quando muito a maior parte chegará ao fim com danos irreparáveis na sua estrutura.
Naqueles dias, estava a pensar da mesma forma que os senhores que construíram este programa, e esquecera-me dos elementos mais importantes em todo este processo, os aluno. Abrandei a marcha. E se não cumprir o preestabelecido? Pelo menos estarei com a minha
consciência tranquila pois todos os meus alunos, que são as peças que constituem o meu móbil chegarão ao fim desta estrada sem danos na sua estrutura.

Arlindo Antunes de Sousa


  
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

Arlindo Antunes de Sousa

Arlindo Antunes de Sousa

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