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Entre margens

Apresentei o alvará e logo ouvi o comentário: 'De um homem é que nós estávamos a precisar!' Assim, de imediato, não compreendi a razão da masculina preferência. Mas logo me foi explicado que seria bem-vindo um pedagogo musculado que pusesse na ordem umas pestes de uns alunos que por aquelas paragens perturbavam a placidez dos dias. Trinta repetentes crónicos, armazenados numa só turma, transformavam a vida das professoras agregadas num inferno. A que por lá tinha passado no ano anterior jurara para nunca mais... Tinha sido insultada e apedrejada. O material didáctico que, na melhor das intenções confeccionava, voava janela fora. E lá se foi, um dia, de atestado médico. 'Um colega é que nos estava mesmo a fazer falta. Do que estes trogloditas precisam é de um pulso firme! Infelizmente, no primário não podemos pô-los na rua, nem mandá-los para casa! Não é?' 'Ainda bem!' - respondi, na mais pura ingenuidade dos 'verdes anos' de profissão. E foi como entrar com o pé esquerdo naquela escola. As colegas passaram a olhar-me de esguelha, como quem pensa: lá vem em este armado em bonzinho! Para abreviar, dir-vos-ei apenas que tudo acabou bem. Só não houve castigos para os maus (como acontece nas telenovelas), porque, afinal... eram todos bons rapazes.

Um novo regime disciplinar

Está na ordem do dia o debate público do projecto de diploma legal relativo ao regime disciplinar dos alunos. Mas, por estranho que pareça, quase só tenho recolhido de diversas intervenções referências ao 'combate à indisciplina' nas escolas. Devo começar por dizer que, por ser pacifista, não poderei participar de qualquer combate. E, igualmente, confessar a minha incompleta ignorância, pois de indisciplina nada sei. Aqui poderia dar o artigo por concluído e com justíssima causa. Mas, como sou de natureza verrumosa, este meu mau feitio impele-me a perguntar, por exemplo: como é que alguém, que critica o ministério por não lhe ter dado a ler um documento, pode criticar um documento que o ministério ainda lhe não deu a ler? Não percebo, mas aconteceu. No pressuposto de que, à data da publicação deste meu texto; já todos terão tido acesso ao documento e, depois de o terem lido, terão opinião formada sobre o assunto, sobre ele passo a tecer algumas considerações, porque também já o li. O diploma em vigor desde há duas décadas apenas serviu para legitimar a banalização de um sistema de sanções. Os processos disciplinares funcionaram como amortecedores de tensões, não lograram eliminar as causas dos conflitos. O projecto de diploma legal que se encontra em
discussão parte de um outro quadro de referência, mas continua a enfermar do mesmo mal. Ainda que sob a eufemística designação de 'medidas educativas disciplinares', dois terços da proposta de normativo refere-se, directa ou indirectamente, a repreensões, suspensões, expulsões e quejandos, reflexos de uma racionalidade arcaica, infectada por sentimentos negativos de desconfiança, insegurança, desforço. Não ouso duvidar das boas intenções do legislador, mas talvez se tenha deixado tentar por um fatal 'meio-termo'.

Indisciplina, a filha dilecta do autoritarismo e da permissividade

A disciplina a que me refiro é a liberdade que, conscientemente exercida, conduz à ordem; não é a ordem imposta que nega a liberdade. Enquanto não compreendermos isto, não compreenderemos mais nada. O problema da disciplina só pode ser equacionado globalmente e não restrito à escola. Mas não estou a referir-me ao triste espectáculo da 'disciplina' partidária, do reflexo condicionado que provoca um erguer de braço sempre que o lider ordene. Nem me refiro à disciplina ausente de certas reuniões e assembleias, nas quais o caos e o falar mais alto que o próximo se sobrepõem ao civismo e à razão. A disciplina poderá ser alcançada e mantida com recurso a mais castigos, normas, multas, punições? Duvido. Talvez dependa mais da criação de condições para o exercício de uma liberdade responsável, na escola e fora dela. Será o exercício da cidadania, dentro e fora da escola, que viabilizará a formação pessoal e social de alunos-pessoas responsáveis pelos seus actos, individuais ou colectivos, e dispensará quaisquer imposições normativas de códigos de conduta. Mas como conseguir tal desiderato, se as escolas raramente se constituem em espaços democraticamente organizados? Dizei-me: quem institui as regras, os direitos, os deveres? Quem estabelece e gere horários e calendários? Quem define objectivos e projectos? Onde pára uma pedagogia da participação e da democraticidade que atenue o sobrepovoamento dos depósitos de alunos em que muitas das nossas escolas se converteram? É o aluno que está doente, ou estará doente a escola e a sociedade que a engendrou e alimenta? Será com mais represálias que se eliminarão as causas do desconforto das violências? Será que o respeito, que muitos dizem estar em déficite, é uma réplica do medo que tínhamos na escola de antigamente? Qual o espaço social de intervenção que cabe aos pais dos alunos? E a outros agentes educativos? Quantas escolas agem cooperativamente na apresentação, discussão, aprovação e aplicação das normas que integram o seu regulamento? Qual o grau de participação activa dos alunos na sua elaboração? Se os alunos (e os pais dos alunos) não sentem a escola como
coisa sua, por que hão-de respeitá-la? Porque hão-de respeitar regulamentos de cuja elaboração não participaram? Em quantas das nossas escolas os representantes dos alunos nos órgãos de administração e gestão e de coordenação pedagógica exercem em pleno as suas funções e fazem valer os seus direitos? Por que será que a maioria dos regulamentos que conheço são repositórios de proibições, de sentenças inevitavelmente iniciadas pela palavra NÃO? (E nem sequer se trata de colocar a ênfase nos deveres: trata-se de ostracizar os direitos) Por que razão plausível não hão-de os jovenzinhos contrariar prescrições a que são alheios? Na determinação 'não é permitido fumar nas casas de banho', qualquer normal aluno (ainda que não-fumador fundamentalista) lerá, em desafio: 'vamos tirar umas passas p'rá retrete, só p'ra chatear os setôres'. Se fosse possível isolar os factores que concorrem para a generalização da indisciplina, avultariam, quer a falta de formação dos professores no domínio relacional, quer a racionalidade que preside ao modo como a escola se organiza. Por muito que nos perturbe a afirmação, as escolas ainda são, como outras organizações, redutos de micro-poderes, mais ou menos ocultos, resistentes a processos de mudança e de democratização. As manifestações de indisciplina não serão também reflexos da impotência que advém da perda de prestígio e credibilidade das instituições? Por quanto tempo mais nos iremos manter no precário oscilar entre duas posições estéreis, entre um pessimismo reaccionário e inconsequentes boas-vontades? Como poderemos pensar em controlar as águas revoltas de um rio, se nos esquecemos das margens que as comprimem?

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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