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Escola e Desenvolvimento Moral

Entendimento do que deve ser a função da escola na área da Formação Pessoal e Social (FPS) e no espaço curricular de Desenvolvimento Pessoal (DPS), está longe de ser consensual. Por mim estou em crer que uma das dimensões nucleares dessa atribuição da Escola, reside na estimulação do desenvolvimento moral, uma vez que a moralidade diz respeito à relação entre as pessoas, remete para princípios básicos que orientam a relação entre as pessoas, domínio este de privilegiada incidência da FPS e do DPS. Posto isto uma questão que desde logo se coloca é a de sabermos se a escola não terá sempre cumprido uma educação moral. Na verdade, num certo sentido, podemos dizer que sim, a escola sempre fez educação moral. Desde logo porque, ainda que não de um modo sistemático ou intencional, sempre o fez através do chamado currículo oculto. Pela forma como globalmente se organiza, pelo que ensina e pelo que omite, pelo modo como o faz, pelo modo como se organiza a relação professor aluno, pelo tipo de actividades que recompensa e castiga, por tudo isso, a escola difunde, sempre difundiu, um determinado conjunto de valores e, ainda que de um modo não directo e não explicito, sempre advogou a favor desses valores e procurou modelar os alunos por conformidade com eles. Por outro lado, mesmo no passado, foram previstos espaços curriculares específicos especialmente centrados nestas questões e destinados à 'aprendizagem' das mesmas, como se de matérias curriculares comuns se tratasse. Mas será que isto que sempre se fez deve ser confundido com o que hoje alguns advogam quando defendem a focagem explicita das questões morais na escola? Julgo que não. Por muito útil que se possa revelar o 'treino moral', a 'educação do carácter' - útil no sentido de potenciar um espaço organizado de trabalho facilitador do ensino e da aprendizagem -, por muito útil que o seja, esse tipo de educação moral mais comum, não pode confundir-se com uma educação moral de teor mais profissional e mais sustentada nas aquisições da psicologia do desenvolvimento. Com efeito, a educação moral tradicional ou o treino moral visa sobretudo o treino do comportamento moral e o ensino directo dos valores (a endoutrinação), e caracteriza-se ainda por uma determinada acção do professor que D. Wright caracteriza deste modo:

a) Define as regras morais da Escola, o que os alunos devem e não devem fazer;
b) Exorta os alunos ao cumprimento das regras, podendo dar ou não explicações sobre as suas prescrições;
c) Determina e administra as recompensas e os castigos consoante os alunos se conformam ou não com as regras;
d) Procura estabelecer um espírito de grupo, estimulando actividades em equipa;
e) Procura desenvolver o carácter, oferecendo-se como exemplo, utilizando alguns alunos como exemplo, distribuindo responsabilidades cuidadosamente definidas e controladas;

Constitui pois um pressuposto desta abordagem mais tradicional que o papel do professor no domínio da educação moral, consiste antes de mais em ele próprio se apresentar como um modelo de pessoa moral, no sentido de ser uma boa pessoal, pessoa possuidora de determinados traços de carácter (honestidade, trabalho, respeito pelo alheio, ser digno de confiança...). Em conformidade com isto o papel do professor será o de treinar os alunos nestes mesmos traços de modo a que eles se portem bem e possam vir a tornar-se bons cidadãos. Trata-se porventura de um modelo educativo com alguma eficácia, contudo, no seu seio, tendem a emergir paradoxos que fragilizam o seu alcance. Vejamos alguns:

a) nós sabemos, por exemplo, que este modelo é tendencialmente mais autoritário do que permissivo, mas sabemos também que uma influência predominantemente assente na autoridade se confrontará com as necessidades de progressiva afirmação e autonomia, próprias do natural processo de desenvolvimento dos jovens - este é um 'facto' psicológico que tende a limitar o alcance daquele poder modelador;
b) sabemos também que entre o professor e o alunos se cultiva mais a distância que a proximidade, mas sabemos igualmente que é mais a proximidade do que a distância que fomenta o aluno a identificação com a instituição, sendo essa identificação condição primeira da sua eficácia modeladora; é também mais a proximidade que a distância que favorece o (re)conhecimento do pensamento moral da pessoa que o aluno é e que portanto potencia a influência do professor no devir desse pensamento;
c) observe-se ainda o seguinte. No quadro deste tipo de educação mais tradicional a relação professor aluno tende a estruturar-se de um modo inteiramente assimétrico: o professor é o detentor do saber (é ele que sabe o que está certo e errado, o que é justo e injusto) e do poder (é ele que define o quê, quando e como recompensar ou castigar) e o aluno é aquele que tem por dever respeitar, seguir, aprender o que aquele lhe apresenta como valioso. Podemos pois dizer que o treino moral, o ensino moral tradicional,
ocorre no quadro de uma relação que Piaget define como sendo de 'respeito unilateral', a qual, segundo o mesmo autor, não configura um espaço social promotor de crescimento autónomo e responsável. A confusão entre moralidade e autoridade não incentiva os alunos ao desenvolvimento da sua própria capacidade de juízo. Através do treino moral o aluno pode aprender a ser disciplinado, a conformar- se com as indispensáveis regras do espaço escolar, mas daí não pode concluir-se necessariamente pela natureza moral da sua acção. Com efeito essa conformidade pode simplesmente decorrer da intenção de evitar o castigo ou granjear recompensas e não da concretização de uma verdadeira aspiração moral. Disciplina e acção moral não significam pois, neste contexto, uma e a mesma coisa, revelando-se nesta diferença, algumas das fragilidades do treino moral. Além das suas fragilidades intrínsecas, a educação moral assente no treino moral, centrada na promoção de bons hábitos e boas condutas, distancia-se profundamente, nos seus próprios objectivos, de uma educação moral assente numa perspectiva desenvolvimentista, a qual aposta na estimulação do pensamento moral, da consciência moral, no desenvolvimento da capacidade de reflexão moral dos sujeitos. A implicação num projecto desta natureza requer por um lado, a assumpção deste objectivo e a sua prossecução de um modo sistemático, intencional e contínuo e requer ainda duas outras condições fundamentais. Com efeito a implicação da escola na estimulação do desenvolvimento moral dos seus alunos requer o envolvimento dos professores e demais agentes educativos no exame crítico a toda a vida da escola e aos valores inerentes às práticas educativas correntes; o exame do que é que se entende que deve ser o clima moral da escola e a preocupação em fazer coincidir um e outro registo (o pensado e o agido). Joga-se nesta congruência entre o que se é e o que se defende que deve ser, a credibilidade dos adultos e da própria escola aos olhos dos alunos e portanto o poder de influenciar o pensamento dos mesmos. Esta abordagem requer que toda a vida da escola seja deliberadamente planeada em ordem ao desenvolvimento dos alunos como pessoas morais. Uma outra condição necessária ao desenvolvimento de uma educação moral não tradicional, passa pelo reconhecimento de que os alunos têm um pensamento moral. Muitas vezes relação com os alunos, contrariamente ao que ocorre entre adultos, não se processa com base no pressuposto, por parte dos professores, da existência de um pensamento e particularmente de um pensamento moral por parte dos alunos. Ora os alunos, como sujeitos sociais que são, vão desenvolvendo ao longo do tempo a sua moralidade, o seu juízo moral sobre o mundo que os cerca. Trata-se de um pensamento moral, particularmente entre os mais novos, geralmente menos adequado que o pensamento moral adulto, mas em todo o caso
trata-se de um pensamento moral. A escola, os professores, só podem Ter a pretensão de influir no desenvolvimento dessa consciência moral, a partir do reconhecimento da mesma, se e só se a mesma for reconhecida e considerada. Se não houver este reconhecimento do aluno sujeito criador e portador de uma consciência moral, a acção do professor arrisca-se a passar ao lado do que é essencial, a centrar-se na acção, no comportamento exterior e a ignorar a interioridade, a intencionalidade, à luz da qual o comportamento pode ganhar claro sentido moral. Asseguradas estas condições básicas coloca-se então a questão: que fazer para estimular o desenvolvimento do pensamento moral? Como fazer? Podemos identificar algumas das principais implicações decorrentes do envolvimento da escola em projectos de educação moral numa perspectiva desenvolvimentista, a saber:

a) modo de relação dentro da escola e especialmente a relação professor aluno, deve promover mais a obrigação e aspiração moral, do que o medo do castigo ou o desejo de aprovação. Piaget sublinhava (1932) que as crianças necessitam confrontar-se 'não com um sistema de ordens exigentes de uma obediência ritualista e exterior, mas antes com um sistema de sanções sociais tais, que toda a gente faça o seu melhor por obedecer às mesmas obrigações e façam isso no quadro do respeito mútuo'.
b) O professor deve ser o exemplo de uma pessoal moral, ou seja, de alguém que se orienta pela lei moral e não de alguém que é a fonte dessa lei. Dizia Piaget (id): 'cada um deve colocar-se ao nível da criança e proporcionar-lhe um sentimento de igualdade, realçando as suas próprias obrigações e deficiências ... criando uma atmosfera de ajuda e compreensão mútua'.
c) Deve ser dado apoio aos alunos na organização dos seus protestos morais, ajudando-os a desenvolver competências sociais conducentes a protestos construtivos. É importante que sintam que podem estar lado a lado com os professores na implementação da moralidade na escola.
d) Devem existir dentro do currículo actividades sistematicamente orientadas para o aprofundamento da compreensão dos conceitos e problemas morais e para o desenvolvimento do juízo moral.
e) A consideração das questões morais no currículo requer uma metodologia específica: a reflexão pessoal, oral e escrita, o debate, a acção organizada no âmbito da metodologia de projecto, a pesquisa, são exemplos de estratégias adequadas à educação moral.
f) Quanto às questões a analisar elas podem decorrer de assuntos tratados nas próprias disciplinas (em especial as de Ciências Humanas e Sociais) e de problemas do dia a dia, que ocorram dentro e fora da sala de aula, dentro e fora da escola.
Ao fim e ao cabo é a estrutura moral das relações entre pessoas mais ou menos próximas, mas também da própria sociedade que, a partir de questões concretas, deve ser objecto de análise e debate, com vista ao fortalecimento, ao desenvolvimento, do pensamento moral.
g)Kohlberg avançou uma outra importante estratégia de desenvolvimento moral, a saber, a criação de escolas justas, isto é, democráticas. Com efeito o modelo de 'escola justa' consiste essencialmente numa organização democrática da vida da escola, numa estrutura de governo baseada no exercício directo da participação democrática. Alunos e professores participam em pé de igualdade no governo da escola, instituindo-se para o efeito a existência de reuniões plenárias e sectoriais de análise dos problemas e de tomada de decisão. Tratava-se de organizar a escola de tal modo que 'alunos e professores superassem a sua dependência dos modelos tradicionais de autoridade e ... aprendessem a participar democraticamente na responsabilidade das decisões (Paollito, 1984, p. 175).

Tratou-se de uma experiência desenvolvida por Kohlberg e a sua equipe em Cambridge, no início da década de 70. A experiência decorreu em escolas secundárias relativamente pequenas, com um corpo docente motivado e previamente preparado na áreas do desenvolvimento e educação moral. Mais uma vez se mobiliza a ideia de que, embora o modelo tradicional de autoridade possa ter alguma eficácia, ele é muito pouco recomendável do ponto de vista do favorecimento do desenvolvimento moral. Deseja-se que a obrigação moral de seguimento de regras decorra da implicação pessoal e colectiva no processo de tomada de decisão sobre as regras e não da pragmática e calculista conformidade com as mesmas. Neste contexto, o papel dos professores consistia em confrontar os estudantes com argumentos de nível relativamente superior ao seu e em estimulá-los a aprofundarem a justificação racional das suas posições e a procurarem colocar-se no ponto de vista do outro, de modo a alargarem a sua própria perspectiva. Enquanto modelo assente na democracia directa trata-se de um modelo dificilmente transferível, na sua totalidade, para a generalidade das nossas escolas. Em todo o caso é possível transferir muitos ensinamentos, quer ao nível do modo de definição das regras de funcionamento da sala de aula e da tomada de decisões sobre os problemas que aí ocorrem, quer ao nível do governo geral da própria escola, incentivando-se o eficaz funcionamento das estruturas de democracia representativa previstas na legislação em vigor. Também a política disciplinar da escola, muito teria a ganhar com uma maior participação e responsabilidade dos estudantes na
definição das medidas de prevenção e de resposta aos problemas e na análise e decisão sobre os conflitos surgidos.

Em suma, procurámos nesta comunicação comparar a educação moral tradicional e a educação moral assente numa perspectiva desenvolvimentista, convictas de que é esta última abordagem aquela que mais potencia a formação de cidadãos portadores de uma consciência moral mais desenvolvida, mais autónoma, mais responsável e mais cooperativa.

Ana Carita * (Comunicação apresentada no Encontro Educação e Desenvolvimento Local (Pensar Educação. Construir o Futuro). Loures, Câmara Municipal, 1996)

Referências Bibliográficas

. Hersh, R.; Reimer, J.; Paollito D. (1984). El crecimiento moral de Piaget a Kohlberg. Madrid, Ed. Narcea. . Piaget, J. (1987). El criterio moral en el niño. Barcelona, Ed. Martinez Roca. . Wright, D. S.. Moral and Social Education. (Texto mimeografado).


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

Ana Carita
fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa
Ana Carita
fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa

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