Página  >  Edições  >  Edição N.º 202, série II  >  Tempos modernos

Tempos modernos

Quem, pelo privilégio da idade, ainda pôde ver nas salas dos cineclubes os filmes mudos de Charlie Chaplin – portadores de uma mensagem ideológica progressista, que na era mcarthysta o levaria à expulsão dos Estados Unidos, em 1952, e que a censura do regime salazarista impedia de passar nas salas comerciais –, ao ver hoje, nas ruas das nossas cidades, a incrível profusão de anúncios de compra de ouro e prata e as portas das fábricas que não responderam às exigências de maior produtividade e competitividade pejadas de trabalhadores desempregados, não deixará de se questionar se é verdade ou não, como se pensa, que a história não se repete e o tempo não volta para trás… Ou, mais questionável ainda, se não se pensará que no mundo desenvolvido algo está podre, como dizia Hamlet do reino da Dinamarca…
Lembramo-nos de dois filmes paradigmáticos: “A Quimera do Ouro” (1925) e “Tempos Modernos” (1936). Ambos retratam uma época crucial dos Estados Unidos, em que a grande crise financeira de Wall Street de 1929, embora confinada ao mercado da Bolsa, também é resultado da cedência do padrão-ouro a um sistema monetário internacional que acabou por avassalar as relações comerciais dos países mais ricos (e não só) representados nos acordos de Bretton Woods (1944), nos quais participaram 44 nações aliadas.
Ora, implicitamente, aqueles filmes fazem o historial do tempo anterior às duas terríveis guerras mundiais, que também mudaram as culturas da humanidade, expulsando crenças e mitologias antigas sobre o precioso e ambicionado metal, que todavia começou a ser “maldito” depois do bíblico Aarão o figurar como um bezerro substituto de Deus e dos fins trágicos dos ricos rei grego Midas e imperador índio sul-americano Zipa ou El Dorado. Mas sabendo-se hoje que todas as crises económico-financeiras que deflagraram no mundo têm no centro um padrão monetário – vulgo o dinheiro; em Angola já foi búzio e sal-gema – que determina as relações de troca, temos de nos interrogar se não é aquela “maldição” que continua na forma de febre de riqueza ou de compulsão consumista – sobre as quais, talvez Freud, Pavlov ou Marcuse ainda diriam alguma coisa mais das pulsões, dos reflexos e das catarses sociais…
O primeiro filme reenvia-nos para a corrida ao ouro, nas minas do Alasca, nos finais do século XIX, quando a mesma já ocorria na Califórnia e em vários países da América do Sul, como o Brasil, a Argentina, o Chile, a Colômbia ou a Nicarágua, e na África do Sul, na Austrália ou na Nova Zelândia. Como as minas de ouro e prata da Península Ibérica já não eram atrativas desde o saque romano, Portugal e Espanha transferiram a sua “compulsão”, designadamente nos séculos XVII e XVIII, primeiro para as colónias sul-americanas, depois para as africanas.
Mas ficaram outros minérios que se tornaram mais valiosos e imprescindíveis no decurso da revolução industrial, como o ferro, o cobre e o volfrâmio, com uma importância acrescida durante a segunda guerra mundial, pela sua aplicação em máquinas, armas e munições. A “febre do volfrâmio” em Portugal não foi substancialmente diferente da “febre do ouro” na América – a nossa literatura produzida na época ou nela inspirada (basta lembrar «Volfrâmio», de Aquilino Ribeiro, ou «As Minas de S. Francisco», de Fernando Namora) iguala a narrativa do primeiro filme de Chaplin sobre a saga, odisseia ou calvário do mineiro no Alasca, no caso, do camponês português que abandonou a terra do seu duro e escasso pão para escavar as minas que todavia nunca lhe pertenceram.
Do livro de Aquilino se disse: “O volfrâmio foi para as populações do Norte, deserdadas de Deus, o que o Maná foi para os Israelitas através do deserto faraónico.”
Não era por menos o que ocorria nas minas cavadas no Norte e Centro, como as da Borralha, da Panasqueira ou de Regoufe.
Em Rio de Frades, foram abertos seis quilómetros de galerias e chegaram a trabalhar mais de 3.000 pessoas. Ganhava um mineiro 18 a 20 escudos por dia de trabalho de sol a sol, valendo o quilo de volfrâmio 150. Então, o concelho de Arouca foi objeto de um assomo de industrialização e proletarização dinamizado por investimento estrangeiro como antes não se tinha visto. Com o advento das modernas tecnologias, aos trabalhadores desafetados dos campos e das indústrias primitivas restou escolherem entre a maior pobreza e emigrar em busca de eventuais eldorados no estrangeiro próximo ou longínquo.
Nos Estados Unidos, nas décadas de 40 e 50, a cidade de Detroit ufanava-se da sua indústria automóvel, centrada na General Motors, Ford e Chrysler. Chegou a ser considerada a quarta maior cidade do país, com dois milhões de habitantes. Ali, parafraseando Saramago em «Levantado do Chão», falando de Portugal, “O lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome (…)”. Santos, porque fazedores de riqueza rápida eram os banqueiros, os bolsistas e os ricos iguais a Zipa e Midas, que se ornavam de joias e espojavam em pó de ouro… até que, quanto a Midas, um deus desagradado o castigou impondo-lhe orelhas de burro, mal disfarçadas, mesmo no sepulcro, sob uma farta cabeleira.
Os “santos” americanos de ontem, hoje insolventes numa Detroit desertificada e com uma população quase reduzida aos negros e brancos que não quiseram ou não puderam deixar a “sua” cidade, não falam do tempo de desemprego e fome em que milhões foram obrigados a penhorar ou vender as joias de família para, com o pecúlio, não mostrarem que também já eram pobres ou tinham medo de vir a ser. Voltando a Saramago – “Cada século teve o seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender por morabitinos, marcos de ouro e prata, reais, dobras, cruzados, réis e dobrões, e florins de fora.” –, a dúvida que nos fica é sobre como será a nossa vida ainda amanhã, com o Euro de fora, se não começarmos por denunciar quem tem orelhas de burro.

Leonel Cosme


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo