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Notas sobre o trabalho de campo

Escrevo do alto da minha experiência de trabalho na demanda de cantos e músicas de tradição oral nas comunidades em acentuado processo de desruralização e de despovoamento do Planalto Mirandês, depois de na aldeia mais oriental de Portugal – de seu nome Paradela, do saudoso Francisco dos Reis Domingues, dito Tiu Lérias – ter assistido à evocação, por gente com anos vestidos de negro e de muita solidão, de velhos cantos que a memória afetiva não permitiu que se desvanecessem por completo.
Acontece que nesse esporádico encontro, registado para memória futura, mas, sobretudo, para ser matéria de trabalho de um grupo de jovens, a determinada altura, os informantes foram confrontados por um dos estudantes presentes com uma pergunta de todo escusada e cuja formulação – sei-o por experiência pessoal – pode bem mais fechar portas de diálogo (logo, de aquisição de conhecimento) do que propriamente abrir janelas para a compreensão desses repertórios.
Quem é que lhes ensinou esta cantiga? – foi-lhes perguntado. E, como se não bastasse, a reincidência na inconveniência foi do mesmo modo assaz eloquente: mas na outra aldeia não cantam esta cantiga da mesma maneira…
Questionar desta maneira os guardiães e transmissores dos cantos de tradição oral denota, no mínimo, um desconhecimento básico sobre os mecanismos de aquisição dos mesmos no seio das comunidades rurais. Com efeito, aprendia-se por imersão, ou seja, pelo facto de se viver numa determinada comunidade, onde as expressões musicais eram vivenciadas em contextos (momentos performativos, como por exemplo as ocasiões festivas especiais, as festas patronais…) e territórios (no âmbito familiar, nos terreiros, nos campos, nas curraladas…) muito concretos.

Aprender de ouvir. O simples facto de se fazer parte de uma determinada comunidade conformava a aquisição de todo um património cultural imaterial, naturalmente com distintos e diferenciados níveis, tendo em conta a capacidade auditiva e de memorização, deste modo se construindo as variantes dos repertórios – justamente, uma das mais interessantes características identitárias das músicas e cantos de tradição oral.
Quem, porventura, possa ser levado a pensar que os transmissores ficam ofendidos ou melindrados pelo facto de uma tal pergunta poder ser interpretada como implícito reconhecimento a priori da sua incapacidade para aprenderem à sua custa, que se desengane. Essa não é a verdadeira questão, pela simples razão de que não era necessário ensinar o que quer que fosse a quem quer que fosse. Ouvia-se e aprendia-se, tão simples como isso, sendo bem verdade que na cidade está-se e na aldeia é-se…
Mas isto de se aprender também tinha os seus problemas. No caso específico dos gaiteiros, foi-nos dado registar numerosos depoimentos referindo as aventuras e desventuras dos mais novos aspirantes a tocadores das emblemáticas gaitas de foles, quando procuravam, olhos fixos na ponteira, aprender como é que os velhos gaiteiros colocavam os dedos para tocarem esta ou aquela moda – o que estes, de modo algum, facilitavam, escondendo sob todas as formas a respetiva técnica de digitação ou impedindo mesmo a sua audição, simplesmente porque, se facilitassem a aprendizagem a quem quer que fosse, isso significaria, mais tarde ou mais cedo, concorrência na função. O que dispensavam, como está bom de ver.

Imersão e variabilidade. A aprendizagem por imersão, favorecendo a fixação e a transmissão de variantes de um mesmo repertório, determinou todo um processo de apreensão e aquisição de conhecimento que conferiu a cada comunidade o caráter funcional de verdadeira aldeia-escola.
No decurso das nossas andanças (etno)musicológicas pelas comunidades rurais, foi-nos dado constatar que os mecanismos da transmissão oral assumiam, em cada aldeia, aspetos específicos, conformando um conjunto de variantes aos mais diversos níveis, sobretudo relacionados com os agentes transmissores e com as circunstâncias em que a tradição se foi construindo – no perpetuum mobile que a caracteriza, tão bem evidenciado e consignado no dito popular de que quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto.
Acresce que este elemento de variabilidade constitui, justamente, uma das características mais significativas da transmissão dos repertórios musicais pela via da oralidade, ou seja, o mecanismo da mudança que determina a evolução de todas as tradições que não pararam no tempo – o que acarretaria a sua morte e desaparecimento – e se foram transmitindo pelo facto de serem vivenciadas pelas respetivas comunidades.
Compreender que os repertórios musicais de tradição oral de um determinado âmbito comunitário eram aprendidos por imersão e viviam de variantes é condição indispensável para um trabalho de campo rigoroso, correto e adequado, quando se trata de efetuar registos documentais para memória futura.

Mário Correia
Centro de Música Tradicional Sons da Terra


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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