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Ensino público: o mal amado

Foi de novo um “acontecimento” marcante no mundo escolar (e não só) a publicação dos resultados dos exames sob a forma de ranking.

As primeiras páginas dos jornais deixaram-se invadir por referências à efeméride recorrendo às fórmulas mais apelativas, desde as aparentemente só noticiosas até às mais suscetíveis de gerar intriga e sedução. Importaria refletir sobre o significado deste “acontecimento”. Antes de mais, sobre o que determina a sua fulminante afirmação neste lapso de tempo tão limitado. É evidente que, aqui, desempenha um papel determinante a forma como a imprensa diária tomou conta deste objeto que rotulou de ranking. E nessa forma não foi acidental o tratamento marcadamente político que lhe foi conferido, quando o direito à divulgação pública dos resultados escolares foi reivindicado como condição básica da democracia, associada à causa da melhoria do sistema escolar.
Não era, evidentemente, uma causa linear, esta, de associar a democracia à publicação dos resultados escolares, como ainda hoje não é.
Aliás, não parece ser outro o sentido da relutância ministerial em patrocinar explicitamente o processo de divulgação, mesmo em plena época cratiana, ainda que, neste caso, todas as dúvidas sejam legítimas quanto à boa fé da atitude. Na verdade, hoje parece não haver distinções de fundo entre o essencial do discurso ministerial e as respetivas medidas que vêm sendo adotadas e as razões que foram (e continuam a ser) invocadas pelos corifeus da rankinguização na imprensa.
Em ambos os casos, entrecruzam-se argumentos que invocam a bandeira da liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino como o grande cavalo de Troia para a redenção do ensino em Portugal. Nos termos da argumentação produzida, e atentos os termos formais em que ela é apresentada, a liberdade de divulgação dos resultados seria apenas um meio para estimular a concorrência entre os estabelecimentos escolares, o que não poderia deixar de se repercutir na escolha dos pais e encarregados de educação e, consequentemente, na melhoria dos resultados dos filhos e educandos e, indiretamente, dos próprios estabelecimentos escolares. Como se a escolha dos estabelecimentos de ensino pelos pais e encarregados de educação fosse, apenas, uma questão de informação…

Ao serviço dos privados. O que, porém, os resultados do ranking vêm mostrando nos últimos anos é o domínio absoluto de todos os primeiros lugares pelos estabelecimentos de ensino privado, ao contrário do que acontecia inicialmente. O que significa que a liberdade de informação e divulgação rapidamente se converteu num poderoso instrumento de produção de lucro ao serviço dos interesses privados, enquanto as escolas públicas vêm registando os piores resultados dos últimos anos. Segundo o Expresso (09.11.2013), os últimos resultados do Secundário registam 75% de negativas, enquanto em 2012 a taxa foi de 56% e em 2011 de 40%.
Esse é o custo para o ensino público das medidas que têm sido tomadas pelo ministério Crato, em que avultam a diminuição drástica de professores, o aumento de alunos por turma, a introdução de medidas discriminatórias relativamente a alunos com dificuldades – criação dos chamados cursos vocacionais – e, sobretudo, a imposição de uma cultura curricular cada vez mais centrada na mecanização dos conteúdos e distanciada da relação pedagógica e da relação com a vida. Importaria aqui lembrar a nunca suficientemente lembrada expressão de Michel Fabre, para quem os alunos não são “redutíveis a puros sujeitos epistémicos, porque a relação com o saber é indissociavelmente cognitiva, afetiva e relacional”.
Nestes termos, reconhece-se uma total coerência entre a orientação política que vem sendo conferida ao sistema educativo e a privatização crescente dos meios postos ao seu serviço. As medidas constantes do decreto-lei 152/2013 – que prescreve que o Estado passa a “apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas, no âmbito de livre escolha” – não deixam margem para dúvida. De resto, o ministério Crato inscreveu um total de 19,4 milhões de euros no orçamento para apoiar as famílias que pretendam matricular os filhos em colégios privados.
Pode parecer cinismo, mas apetecia sugerir ao ministério que aplicasse parte daquela verba em algumas das 50 escolas que constituem a cauda do ranking do Secundário. Pelo menos àquelas, e são mais de metade, que têm mais de 50 por cento dos alunos dependentes da ação social escolar.

Manuel Matos


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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