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É uma grande injustiça pôr em causa a Escola Pública. Os testes internacionais mostram que estamos ao nível dos outros, ou melhor

Concluiu em julho o mandato de presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), para que foi eleita pela Assembleia da República em 2009. Anteriormente tinha sido deputada do Partido Socialista e assessora de Jorge Sampaio na Presidência da República. Doutora em Ciências da Educação, Ana Maria Bettencourt consagrou grande parte da sua carreira profissional à inovação pedagógica, à formação de professores e à política educativa.
Coordenou diversos projetos, designadamente na área da formação contínua de professores, e foi presidente da Comissão Instaladora, do Conselho Diretivo e do Conselho Científico da Escola Superior de Educação de Setúbal. Integrou o Conselho do International Bureau of Education (UNESCO) e foi presidente da União Internacional dos Professores Socialistas.
Autora de diversas publicações e artigos científicos, desde que deixou o CNE, está a trabalhar num livro sobre educação para o desenvolvimento sustentável, a estudar e a organizar intervenções que fez e não escreveu. “E tento estar atualizada e tomar posição sobre o que se vai passando em matéria de Educação”. A conversa com a PÁGINA começou por aqui.

Publicou recentemente (blogue Inquietações Pedagógicas) um comentário sobre o processo da reforma do Ensino Primário em França, nomeadamente sobre a auscultação dos professores franceses. E questionava: “Em Portugal, quem é que se ouve? Com que bases temos avançado para as reformas? E que avaliação fazemos da nossa situação?”. Quer responder?

Considero que as reformas devem partir do conhecimento das situações, e não de preconceitos de base ideológica, porque a Educação leva muito tempo a mudar, a melhorar, e é necessário perceber os efeitos das medidas que se tomam. Sendo legítimo que quem ganha eleições leve a cabo as suas políticas, é preciso muito cuidado com mudanças que perturbam e não contribuem para evoluções positivas. Foi por isso que, enquanto estive no Conselho Nacional de Educação, me bati pela publicação do “Estado da Educação”, que pretende proporcionar uma visão independente dos problemas e dos avanços na Educação.
Por outro lado, acho que se tem ouvido pouco os parceiros educativos e os professores. O que não aconteceu, por exemplo, com a reforma curricular de 2001, que partiu de uma auscultação e de uma reflexão participada e foi talvez a reforma mais interessante dos últimos tempos, embora admita que havia aspetos a mudar – percebo que, com os problemas financeiros, não fosse fácil manter todas as áreas curriculares não disciplinares, mas havia algumas que era importante manter.

Concorda com a ideia de que a Educação é frequentemente utilizada quase como uma arma de arremesso político-partidário?

O que me parece é que nos habituámos a achar legítimo que quem tem cargos políticos decida com base em opiniões não fundamentadas. A democracia exige maior transparência e rigor nas medidas que são tomadas, porque elas têm consequências para o futuro das pessoas e do país.


Um dos problemas que refere é exatamente a falta de estudos e de comparação.

Sim, e daí dar importância ao PISA [Programme for International Student Assessment], de que saíram hoje [03.12.2013] os resultados relativos a 2012. Enquanto estive no CNE, defendi que nos devíamos ir situando no espaço europeu em que estamos inseridos. Temos metas europeias e compromissos que visam elevar o nível de qualificação dos portugueses. Daí que as políticas educativas devam ter em conta a situação existente e os problemas com que nos confrontamos.

No mesmo comentário, considera que as hipóteses avançadas em França para os maus resultados da Escola Primária poderão ajudar a pensar a realidade portuguesa. Do que conhece desse estudo, quais são os pontos de contacto entre a realidade francesa e a portuguesa?

Um aspeto muito interessante é que já no PISA’2009 nós tínhamos resultados bastante melhores do que a França ao nível da leitura. Os resultados da França provocaram um choque, porque se trata de um país onde as pessoas têm um excelente nível cultural. Tal como a França, Portugal apresenta níveis de insucesso escolar elevados, mas o sistema educativo francês é muito rígido e tem revelado dificuldade em construir uma Escola inclusiva, em diversificar estratégias pedagógicas, em ajudar os alunos que encontram dificuldades no seu percurso escolar, enquanto nós fomos dando passos significativos nesse sentido.

E nós, como é que estamos comparativamente a nós próprios? Com o 25 de Abril houve uma clara fase expansionista da Educação. Esse crescimento continua a verificar-se, ou entrámos já em estagnação, ou mesmo regressão?

Não, nós continuamos a progredir. Pelo menos, dos dados que eu conheço, até 2011/2012, continuamos a progredir ao nível do acesso à educação. Fizemos um progresso notável desde os anos ‘70 (portanto, a seguir ao 25 de Abril), em que tínhamos menos de oito por cento de taxa de frequência do Ensino Secundário. Comparando com os níveis da Europa, era uma catástrofe. Na década de 80, progredimos muito. Depois houve um período em que estagnámos um pouco, mas até 2011/2012 estávamos a progredir muito mais do que a média dos países europeus. Se considerarmos, por exemplo, os portugueses com idades entre os 20 e os 24 anos que concluem pelo menos o 12º ano, estávamos a progredir muito: numa década, subimos na ordem de vinte por cento nas taxas de frequência das pessoas que concluem esse nível; e baixámos na mesma ordem de grandeza a taxa de abandono precoce, ou seja, daqueles que têm nove anos de escolaridade, no máximo. São progressos notáveis, mas continuamos a ter um problema grave, que consiste num elevado desvio etário.

Ou seja, os anos de frequência dos alunos não correspondem à sua idade?

Sim. Por exemplo, se considerarmos os jovens com 17 anos, temos cerca de noventa por cento a frequentar a escola, mas apenas cerca de cinquenta por cento frequentam o 12º ano; os outros estão atrasados.

Um dado que retive do relatório “Estado da Educação 2012”: cerca de três milhões e meio de portugueses têm apenas o 1º Ciclo, ou nem isso…

Exatamente: 3,4 milhões. São dados do Censo 2011.

Isso não configura uma situação de analfabetismo?

É uma situação muito grave. Eu falei de progressos, mas temos ainda desigualdades muito grandes em função da idade, quer no Ensino Básico, quer no Ensino Superior. Se, por exemplo, considerarmos as pessoas com idades entre os 55 e os 64 anos, devemos ter à volta de dez por cento que possuem um diploma de Ensino Superior; porém, se considerarmos aquelas que têm entre os 25 e os 34 anos, esse número sobe para vinte e oito por cento. E na população com menos de 45 anos, mais de metade não terá mais do que o 9º ano de escolaridade. Relativamente aos 3,4 milhões de portugueses que possuem apenas o 4º ano de escolaridade, a situação não será de analfabetismo, mas requer uma intervenção política a sério, em termos de educação de adultos. Temos um problema muito grave de baixas qualificações, e as pessoas com menos de 45 anos ainda vão estar muito tempo no mercado de trabalho.

É, ainda, consequência da situação anterior ao 25 de Abril?

Sim, temos uma herança pesada, com níveis elevados de exclusão e abandono escolares, muita gente que abandonou a Escola ou que a Escola não soube acolher e ajudar a ultrapassar dificuldades, e baixa qualificação da população adulta. Daí termos ainda muitos pais que têm dificuldade em acompanhar os filhos e a persistência de altos níveis de insucesso e de abandono escolares. Portanto, as baixas qualificações são uma consequência da situação anterior e de a Escola não ter sido capaz, durante muitos anos, de se reconverter numa Escola inclusiva, que resolva os problemas dos alunos à medida que eles vão apresentando dificuldades.

Será que nestes anos a Escola mudou pouco? Que não se adaptou às novas realidades, e daí não responder aos alunos?

Nós ainda temos dificuldades, mas a nossa Escola evoluiu muito. A UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] assumiu como bandeira a Educação para Todos, e nós temos caminhado nesse sentido. Mas persistem muitos problemas, muitas desigualdades. A nossa Escola ainda tem muita dificuldade em fazer com que todos tenham as mesmas condições para aprender. Ao nível da escola pós-primária, há práticas que dificultam a inclusão – por exemplo, durante o tempo de aula, frequentemente, os alunos ainda ouvem muito e trabalham pouco. E não se aprende se não se trabalha.

Ou seja…

Os nossos ritmos e a maneira como as aulas estão organizadas levam a que a Escola tenha dificuldade em assumir a responsabilidade pelas aprendizagens.

Muitas vezes, o que ouço nas escolas é que “eles não estudam; as famílias não ajudam”... O que acontece é que, com baixas qualificações, as famílias têm muita dificuldade em ajudar os filhos. Daí eu pensar – com base no conhecimento de numerosas experiências realizadas em Portugal e de situações de outros países – que a transformação da Escola tem de ser no sentido de uma maior responsabilização pelas aprendizagens. E quando digo isto, não estou a dizer que os professores estão a funcionar mal; é a Escola, na sua organização, nos seus ritmos, na maneira como trabalha. Mas não se pode dizer que a Escola está igual ao que era há décadas, porque não é verdade.

Tenho trabalhado muito com escolas, designadamente de periferia, e não têm nada a ver com a escola que eu frequentei, que excluía a maioria das pessoas, porque não tinham possibilidades de a frequentar ou porque iam ficando pelo caminho.

Portanto, a reorganização da Escola é uma questão fundamental? E não passa só pela reorganização curricular?

Reorganização curricular e autonomia para a escola reestruturar o currículo de maneira a que haja espaços de estudo e de trabalho. Eu trabalhei com uma escola que, no âmbito de um projeto de autonomia, fez uma reorganização desse estilo, integrando no currículo, todos os dias, uma zona de trabalho, com instrumentos de responsabilização dos alunos e autoavaliação. O Estudo Acompanhado foi um pouco nesse sentido, só que ficou aquém. Houve um défice de acompanhamento dessa inovação que pudesse proporcionar instrumentos de trabalho e conhecimento dos resultados em termos de qualidade e equidade. Nós temos lidado mal com as inovações: em vez de corrigir o que está mal, deitamos fora o trabalho realizado; não valorizamos os esforços dos professores e das escolas para a mudança e “partimos para outra”...

Não damos tempo para amadurecer...

É. Mas as inovações deviam ser mais acompanhadas, mais avaliadas. Acompanhadas no sentido de formar os professores para serem capazes de melhorar as aprendizagens.

Esse défice pode ser uma consequência do desinvestimento na formação contínua.

Sim, hoje há um desinvestimento preocupante na formação contínua, que pode constituir uma alavanca preciosa para a melhoria da qualidade da educação. Eu estou convencida de que os bons resultados que temos tido em testes internacionais – designadamente no TIMMS [Trends in International Mathematics and Science Study] e no PIRLS [Progress in International Reading Literacy Study], cujos resultados foram muito divulgados – ainda têm a ver com a formação contínua que foi desenvolvida a nível do 1º Ciclo e acompanhada pelas escolas superiores de educação e pelas universidades. Encontrámos escolas no Norte e no Centro que, apesar de terem um contexto social carenciado, obtiveram resultados acima da média do país (situação que não encontrámos no Sul).

E nalgumas delas foram referidos vestígios do efeito da formação contínua; as próprias escolas mantinham, de forma autónoma, práticas de formação contínua que tinham desenvolvido nesses contextos.

A que se deve essa diferença entre as escolas do Norte e Centro e as do Sul? Mais isolamento?

Se eu lhe respondesse, estava a fazer aquilo que acho que não se deve fazer, que é justificar uma situação com uma opinião pessoal sem fundamento em estudo. Acho que tem de se estudar e conhecer melhor a origem destas desigualdades regionais. É provável que as escolas do Sul, nas periferias, tenham uma pior situação social pior e que as famílias invistam menos na escola... No Norte, as escolas que visitei ainda tinham características rurais, com as famílias a acatarem muito os conselhos da escola e a respeitarem muito as sugestões dos professores, talvez a irem com maior frequência à escola… E as escolas a assumirem a responsabilidade pelas aprendizagens, diversificando as estratégias organizativas e pedagógicas.

São hipóteses que resultam de uma primeira abordagem, em entrevistas com responsáveis e professores. Mas, para caracterizar com algum rigor as diferenças entre regiões, seriam necessários mais estudos.

Voltando aos resultados do PISA, que pelos vistos são bons…

Apontam para uma melhoria persistente e caracterizam Portugal como um dos países que mais evoluiu em termos de qualidade e equidade.

… Não há qualquer coisa de contraditório, quando, por exemplo, as classificações nos exames nacionais têm revelado tendência para um abaixamento?

Há, há. O PISA é uma amostra de alunos de 15 anos, estejam eles onde estiverem e em que ano estiverem, que prestam uma prova específica. O PISA’2012 parece mostrar que continuamos a melhorar, o que é bom, atendendo à situação em que estávamos em 2003. Ainda não tive oportunidade de verificar [os dados acabados de divulgar], mas o que se diz é que estamos mais ou menos na média dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] e que melhorámos o número de alunos que tinham piores resultados e o número de alunos que têm bons resultados.

Relativamente à contradição entre os resultados internacionais e os dos exames nacionais, se calhar devíamos trabalhar um bocadinho melhor os nossos exames. Há uma instabilidade de uns anos para outros que devia ser melhor estudada, porque não ajuda nem alunos, nem professores; há resultados que não fazem sentido e que deviam ser estudados e questionados. Por outro lado, nunca percebi porque é que quando saem os resultados não há um maior debate. Os testes internacionais mostram que estamos ao nível dos outros, ou melhor. Como é que não questionamos e trabalhamos mais estas questões?

Questiona-se a qualidade da Escola Pública na “praça pública”…

É uma grande injustiça pôr em causa a Escola Pública.

Se pensarmos que na década de 70 tínhamos menos de 10 por cento de pessoas ao nível do 3º Ciclo e do Secundário e considerarmos os passos consideráveis que demos no sentido de uma Escola inclusiva, o que fizemos o que fizemos pelo Ensino Especial… Quando vemos estes progressos inegáveis, é muito injusto dizer que a Escola Pública não funciona bem. Claro que subsistem situações que devíamos atacar, designadamente o grande problema do insucesso escolar, capacitando a Escola para intervir aos primeiros sinais de dificuldades. E aí, a formação de professores pode ser uma frente de trabalho, bem como a organização e a autonomia da Escola.

O que é preciso é dar mais liberdade às escolas

Em junho, o CNE aprovou uma recomendação relativa à reforma do Estado na área da Educação. Quase meio ano depois, Paulo Portas apresentou o guião governamental da reforma. No que diz respeito à Educação, o que aproxima ou distancia os dois documentos?

Não têm nada a ver. O trabalho do CNE baseou-se nos nossos progressos, nas nossas dificuldades, na necessidade de uma maior rentabilização do sistema e dos nossos recursos. Se queremos Educação para todos, como é defendido pela União Europeia e pela UNESCO, é necessário partir dos nossos problemas. Considerámos, então, como problemas maiores o insucesso escolar – que contribui para que muitas pessoas abandonem a Escola ou que os recursos que investimos na Escola não sejam suficientemente aproveitados – e, por outro lado, a educação de adultos e a qualificação dos portugueses, bem como a importante questão da autonomia e sustentabilidade do Ensino Superior. O guião que apareceu, na minha opinião, é muito ideológico; vai por caminhos de ideologia, não de sustentabilidade nem de melhoria do sistema.

Um dos principais objetivos do seu sucessor no CNE, David Justino, parece ser a revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo. Curiosamente, na altura em que foi empossado, fiquei com a ideia de o ministro Nuno Crato ter dito que a revisão não era uma prioridade do governo…

Não me vai perguntar isso a mim... [risos]

… Se tivesse continuado no CNE, a revisão também estaria na sua agenda?

Não me quero pronunciar sobre essa matéria.

No balanço do seu mandato, na Assembleia da República, deixou sugestões para a reforma do próprio CNE. O que é necessário fazer?

Na altura, falei de vários aspetos. Um é a própria composição do conselho, que seria importante rever, até porque o CNE já foi concebido há muito tempo. E neste momento há prioridades que podiam ser melhor encaradas se tivesse outra composição – por exemplo, o Ensino Especial e a Educação de Adultos não estão representados.

Outra questão muito importante é a consulta obrigatória ao CNE em certas matérias. Tenho ouvido muitas críticas pelo facto de os pareceres serem pouco seguidos pelos governos, mas uma medida que os tornasse vinculativos parece-me difícil de implementar – há conselhos de outros países cujos pareceres são vinculativos, mas também são, normalmente, menos independentes do que o nosso. O nosso é uma instituição com grande autonomia e que tem o direito de iniciativa, que considero muito importante, porque nos permite tratar questões que não são, necessariamente, as que o Governo considera prioritárias ou para as quais consulta o conselho. É evidente que o CNE tem obrigação de dar os pareceres que lhe são pedidos pelo Governo e pela Assembleia da República, mas é essencial poder tomar iniciativas como a da reforma do Estado ou da elaboração dos estados da Educação.

No seu mandato, o CNE produziu três relatórios sobre o estado da Educação. Pode dizer-se que foi a “mãe” da iniciativa?

Sim, fui eu que propus ao conselho a sua realização. Devo dizer que quando cheguei me referiram que já tinha sido falada a hipótese de haver um documento dessa natureza. Mas eu esforcei-me muito para que fosse possível ver a luz do dia. Não era fácil, porque o acesso a dados é complicado.

Na minha vida política e profissional, encontrei algumas dificuldades para aceder a dados essenciais ao trabalho que realizava e, portanto, achei que o CNE deveria prestar esse serviço e disponibilizar um retrato independente da situação da Educação.

Os relatórios são temáticos?

Têm um conjunto de indicadores que são trabalhados todos os anos e um tema central: o primeiro foi dedicado aos percursos escolares, o segundo à qualificação dos portugueses e o terceiro à autonomia e descentralização.

Relativamente à autonomia das escolas, e dos professores nos seus contextos de trabalho, que importância lhe atribui? Sei que é defensora da constituição de equipas, do trabalho colaborativo…

Eu sou defensora da autonomia, mesmo de uma autonomia que permita às escolas terem estabilidade do corpo docente. Considero que a instabilidade do corpo docente é um problema gravíssimo que nós temos. Nenhuma organização alcança bons resultados se estiver sempre a mudar os seus quadros, a sua base de trabalho. Por isso, sou favorável a uma autonomia mais avançada, que permitisse às escolas estabilizarem e terem uma palavra a dizer na escolha dos seus professores. Depois, sou a favor da autonomia ao nível da organização do currículo e da própria escola – e defendo a organização da escola com base em equipas de professores.

Sou da área da Pedagogia e acho que a coordenação do trabalho pedagógica em equipa, com base na construção de materiais, na transdisciplinaridade, é muito importante para o sucesso dos alunos.

Numa entrevista ao educare.pt, em outubro, o presidente do CNE afirmou que “o conceito de autonomia das escolas não passa de um chavão”.

Infelizmente, temos poucas escolas que tenham usado efetivamente a sua autonomia. Mas eu acredito na importância da autonomia e sou uma admiradora da Escola da Ponte, cujo exemplo vale a pena referir. Presidi ao júri de um concurso do Instituto de Inovação Educacional em que foi premiada. Vi a candidatura daquela escola e achei extraordinário: “Não sei como é possível!” Fomos verificar e, de facto, era uma experiência extraordinária. Tenho pena que não haja mais escolas da Ponte, mas há muitas escolas em que a autonomia foi muito importante para avançaram com estratégias diferentes, apesar de menos ambiciosas. E essas experiências deviam ser melhor conhecidas.

Portanto, a autonomia não é um chavão, mas uma “utopia” possível?

Claro que é possível. O que é preciso é dar mais liberdade às escolas. Para as escolas que querem avançar com a autonomia nem sempre é fácil, porque dificilmente se valorizam estratégias diferentes, porque se têm sempre como referência alguns estereótipos organizativos, e porque se põem entraves em pequeninas coisas. Mas a autonomia de organização é muito importante e deve ser incentivada – se se desafiasse um conjunto de escolas para avançarem com organizações diferentes, com autonomia e condições de trabalho, acho que éramos capazes de ter alguma surpresa positiva.

Li algures que defende a educação básica organizada num ciclo único de seis anos e com um professor generalista.

Leu nos blogues, mas não foi a posição que eu defendi.

Não?

Não. Quando eu era conselheira no CNE, antes de ser eleita para a presidência, fui relatora de um parecer sobre a educação dos zero aos 12 anos que se baseava num vasto estudo coordenado pela professora Isabel Alarcão. Constatava-se que a maior parte dos países europeus tinha um ensino primário – designação mais corrente – mais longo do que o nosso. O prolongamento do 1º Ciclo foi então bastante debatido. Como relatora do parecer, considerei que não existiam, em 2008, condições para avançar com uma reforma desse tipo.

O problema essencial consiste na existência de ruturas nas transições e no facto de termos transições inúteis, designadamente criadas pelo 2º Ciclo. E o que eu tenho afirmado é que o 2º Ciclo, tal como existe, não faz sentido. Defendo que devíamos avançar para um consenso, com base em estudos e debate participado, para a organização do Ensino Básico em dois ciclos (em vez de três), com maior continuidade, com um segundo ciclo, comum a todos os alunos, com funções de orientação, que precedesse o Ensino Secundário. Esta situação poderia ser hoje mais fácil do que em 2008, dada a existência dos agrupamentos.

Como é que um país que tem 3,4 milhões de pessoas com o 4º ano de escolaridade ou menos pode prescindir da educação de adultos? Como é que nos podemos dar ao luxo de ter tantos professores no desemprego e tanta gente a querer formação?

Há uma degradação da condição docente

Proponho-lhe agora um breve comentário sobre alguns temas da atualidade política educativa. Por exemplo, a afirmação pública de descontentamento dos professores face ao que consideram ser a degradação da condição socioprofissional docente.

Não é propriamente a minha área, mas não é difícil perceber, pela análise de algumas situações, que a vida de um professor é hoje mais difícil e que existe uma degradação da condição docente. Por exemplo, o aumento do número de alunos por turma. Penso que às vezes se exagera quando se diz que com 24 alunos já não se pode trabalhar. Mas há limites, e hoje, os professores com quem falo têm muitas dificuldades em trabalhar com um número de alunos superior a esse; no caso do 1º Ciclo, com várias crianças com dificuldades e algumas com necessidades educativas especiais diagnosticadas. Outro exemplo: ter-se acabado com a Educação para a Cidadania, que era uma área importante para a regulação da vida na escola. Felizmente, há escolas que decidiram mantê-la, e penso que fizeram uma opção acertada. Não ter uma área de regulação, onde se analisem com os alunos as dificuldades e os problemas de aprendizagem e comportamento e onde eles sejam responsabilizados pelos seus resultados, não facilita o trabalho pedagógico.

Formação contínua de professores e prova de avaliação de conhecimentos e capacidades…

Sempre defendi que é muito importante haver uma rede de formação contínua, que não deve ser organizada por catálogo, nem constituída por cursos desinseridos da prática – aquilo que eu defendo é uma formação em contexto, baseada em reflexão sobre a prática. Para a maioria dos casos, defendo a formação organizada em termos de acompanhamento das práticas, de superação das dificuldades, de discussão e pesquisa de soluções para melhorar as aprendizagens e a vida escolar. Tenho trabalhado assim com várias escolas.

Quanto à prova, acho que não faz qualquer sentido. Na década de 90 defendi uma prova à saída das instituições de formação, porque havia diplomados em situações muito desiguais, o que era injusto. Não é politicamente correto lembrar esta posição nesta altura, mas eu gosto de ser coerente. Hoje, a situação é diferente, porque existe avaliação das formações, realizada pela A3ES [Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior], e os cursos são financiados e autorizados a funcionar, ou recusados, com base nessa avaliação. Por outro lado, os professores já têm avaliações exigentes associadas à prática profissional, o que faz muito mais sentido. Esta prova não é adequada a quem trabalha, e arriscamo-nos a perder excelentes professores com base num instrumento de avaliação inadaptado.

Desemprego docente…

Tenho poucos dados sobre professores, porque não tem havido divulgação de dados fiáveis sobre os que saíram do sistema e os que poderão estar a mais em virtude da demografia. Mas devemos ter em conta as necessidades reais do sistema. E como é que um país que tem 3,4 milhões de pessoas com o 4º ano de escolaridade ou menos pode prescindir da educação de adultos? Como é que nos podemos dar ao luxo de ter tantos professores no desemprego e tanta gente a querer formação? Como podemos estar a recusar formação às pessoas que estão no desemprego?

No Ensino Superior, eu não sei se os níveis de investigação – e mesmo a competitividade que atingimos a nível internacional – serão sustentáveis com o envelhecimento do corpo docente que temos, com os professores que vão para a reforma, com os cortes no recrutamento de jovens professores, com a emigração...

A Educação não tem, claramente, o número de professores, educadores e técnicos de que precisa. Há questões que têm a ver com exigências dos credores internacionais, como a redução do número de funcionários públicos, mas há opções que não apontam para o desenvolvimento e o futuro de Portugal. Nós precisamos de pessoas mais qualificadas, precisamos de mais apoios e de muitos mais professores do que os que temos neste momento. De certeza.

Publicação de rankings…

Enquanto estive no CNE, defendemos que a avaliação das escolas devia ter em conta o valor acrescentado – o trabalho de avaliação das escolas era realizado por um conjunto de conselheiros e foi sempre aprovado em plenário. Entretanto, houve um trabalho de cooperação com a Inspeção-Geral da Educação, que veio a criar um indicador de valor esperado. Penso que rankings baseados apenas nos resultados não fazem sentido; devemos comparar o que é comparável, tendo sempre em conta a origem social dos alunos e o que é que escola fez por eles. O jornal Público já trabalhou esta questão, numa aproximação que eu considero interessante.

E no «Estado da Educação 2012» foram tratados os resultados escolares tendo em conta a caracterização sociocultural das escolas; penso que foi um progresso.

Liberdade de escolha, cheque-ensino, financiamento público às escolas privadas…

Desde logo, haverá que definir bem o que é serviço público de educação e quem o pode prestar e em que condições. Depois, a liberdade de escolha que se tem praticado não é, efetivamente, liberdade de escolha; é, em muitos casos, a liberdade de as escolas escolherem os alunos.

Cheque-ensino: imaginando que os pais têm um cheque para poderem pagar o ensino privado e rejeitar o ensino público, quantos vão ter verdadeiramente essa capacidade de escolha? O que tem acontecido em países que optaram por aquilo que se designa equivocamente por “liberdade de escolha”, como a Suécia, é que a medida contribui para piorar os resultados em termos de equidade, e mesmo de qualidade, e depois começam a criar-se guetos.

O ensino privado: conhece escolas privadas que possam dar resposta adequada e que estejam situadas nas periferias mais difíceis das grandes cidades? Eu não conheço. Portanto, nas zonas onde residem as pessoas mais desfavorecidas, não haverá liberdade de escolha. Por outro lado, eu não percebo esta prioridade política.

Faltam recursos para promover a Educação para Todos e as metas com que estamos comprometidos, não há verbas para manter as escolas com boas condições de trabalho, nem para ajudar alunos com necessidades educativas especiais... Estaremos em condições de financiar deste modo o ensino privado? Será este o momento para discutir esta questão? Quando me candidatei ao CNE, colocaram-me a questão da liberdade de escolha e esta foi sempre a minha posição: não faz sentido seguir esse caminho, porque cria guetos e essa liberdade não vai existir igualmente em todas as zonas.

E relativamente ao designado ensino vocacional?

Aquilo que eu tenho defendido, com base no que me é dado conhecer de um projeto rodeado de secretismo, é que este não é o caminho para a Escola inclusiva. O diretor do PISA é alemão e extremamente crítico relativamente ao modelo alemão, que considera ter falta de equidade no Ensino Básico; a esquerda alemã e mesmo os sociais-democratas também são bastante críticos.

Há uma questão que me parece muito grave, que é a orientação escolar compulsiva das crianças aos 11/12 anos – sabemos que os piores resultados estão quase sempre associados ao meio social de origem dos alunos e que as escolhas, nessa altura da vida, vão ser muito condicionadas pela origem social, o que contribui para aumentar as desigualdades.

Gostei muito de ser deputada, foi muito interessante

Para terminar, algo mais pessoal: foi deputada à Assembleia da República, assessora do Presidente da República Jorge Sampaio, presidente do Conselho Nacional de Educação...

Fui membro do Secretariado Nacional do Partido Socialista…

… Em que função se sentiu mais realizada?

É difícil escolher, mas gostei muito de ser deputada, foi uma experiência muito interessante. Trabalhei essencialmente na área da Educação, mas muito perto das populações. Foi entre 1991 e 1995, durante um governo de Cavaco Silva, de maioria absoluta; era difícil… E trabalhei muito no terreno, porque acho que há uma missão de grande responsabilidade dos deputados, que consiste em ouvir as pessoas e lutar por causas. É ser um bocadinho intérprete entre os governos e as populações que representamos.

Eu gostei muito de me sentir a representar as pessoas que me tinham escolhido.

O atual presidente do CNE é um ex-ministro da Educação. A ex-presidente do CNE tem alguma ambição neste capítulo? Gostava de ser ministra da Educação?

Não, não tenho mesmo. Eu gosto de trabalhar com as escolas, e espero continuar. E fico por aí.

Mas a experiência e o conhecimento que acumulou nessas funções devem ter-lhe dado um bom lastro para o exercício do cargo. Eu conheço relativamente bem o sistema. Sobretudo estes quatro anos no CNE deram-me mais capacidade de conhecimento. Mas não tenho nenhuma ambição nesse aspeto. Mas gosto da política, gosto mesmo. Nas últimas eleições autárquicas, fui mandatária do candidato do Partido Socialista em Setúbal, e foi uma experiência interessante. Gosto de andar no terreno, de ouvir as pessoas, de falar com elas, de fazer programas, de trabalhar em projetos para melhorar a vida das pessoas.

Então, a Educação não vai ter “a ministra Ana Maria Bettencourt”?

Não! Não vai ter, não!

 

O fim das áreas curriculares não disciplinares

Acabar com a Educação para a Cidadania foi um erro muito grave, porque mesmo quando esse espaço servia apenas para regular a vida da turma, ele era importante. Mas não devia ficar por aí: fazer com que uma turma seja bem comportada é importante; mas fazer com que os alunos conheçam a organização e a situação do país, que aprendam a intervir como cidadãos e que conheçam os seus direitos e deveres, parece-me que é fundamental.
Aprender a ser cidadão é também aprender a viver com os outros, a saber gerir conflitos.
Quanto à Área de Projeto, penso que em muitos momentos foi mal gerida e mal acompanhada – os professores não tinham muita formação para trabalhar em projetos. Na altura, defendi que, enquanto não houvesse maneira de garantir que se desenvolvessem projetos em todas as escolas, era importante manter esta área. Percebo que, por razões financeiras, seja preciso cortar no currículo, mas não conheço nada de importante que hoje se faça na gestão pública, na gestão da vida, que não tenha como base um projeto.

Como é que a Escola pode não ensinar a fazer projetos? Ter desaparecido esta área, parece-me muito mal.
Finalmente, o Estudo Acompanhado. Tem de haver apoio aos alunos. Eles têm de aprender a trabalhar na escola, porque ainda temos muitos alunos cujos pais não sabem acompanhar o estudo – um dado interessante dos estudos sobre pais que estiveram em processos de educação de adultos é que passaram a contribuir para que os alunos melhorassem os seus resultados. Uma pessoa que aprende a fazer um projeto educativo para si, também sabe ajudar os filhos a fazerem projetos educativos.

Entrevista conduzida por António Baldaia


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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