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Vitória

Ao começo da tarde, o escritor avançava, devagar, a apalpar terreno, suportando mal o cheiro a peixe predominante naquele setor da praça, apesar de os esguichos de água, a poder de golpes de mangueira, paulatinamente, atenuarem a pressão do fedor. Avançava na direção das bancas, àquela hora semivazias de pescado. Aí esperava encontrar Vitória, a mais idosa das vendedeiras registadas.
Inquieto quanto ao retorno lucrativo da tentativa, tantos anos volvidos desde que perdera de vista a varina que calcorreava as ruas da Vila de canastra à cabeça, a apregoar “vivinha da costa”, desembaraçando rotinas de abastecimento domiciliário comuns na época, escusara-se a perguntar, à chegada, qual o paradeiro da mulher, a fim de não alardear notícia do seu interesse a estranhos e dar involuntariamente azo a especulação miúda sobre os impulsos que lhe teriam encaminhado os passos para o mercado. Resolvera agir por conta própria. A olho nu. Se aquela que procurava andava por ali, acabaria por descobri-la.
A ser exata a informação colhida em cadastro municipal, de que estava viva e era arrendatária de banca fixa, confiava ser capaz de a localizar sem dispêndio de minutos em indagações desnecessárias junto de terceiros.
Buscava assunto para um texto destinado à revista do Norte na qual colaborava duas vezes por ano. Escrevia-os nos dias em que bem-vindos interlúdios justificados pelo doseamento do esforço criativo, próprio do eterno romance em processo, impunham relaxantes desvios de trabalho por conteúdos e saberes de diferente grau de exigência. Alguns dos seus pares, nesses intervalos, produziam contos. Outros ocupavam o “impasse” a escrever prosa diarística. Vários optavam por poemas. A ele “coubera-lhe” investigar para uma crónica.
Lembrara-se, sem que houvesse uma nítida causa para semelhante erupção reminiscente, de Vitória e das famas diversas que envolviam a sua controversa personalidade. Por que não solicitar-lhe o encontro capaz de a levar a discorrer sobre os momentos áureos em que a lenda colava à saia preta sobreposta ao alvo saiote orlado a renda de bilros, e à perna bem lançada que se desenhava a partir dos tamancos até à anca, lenda tão cruel, devastadora e ao mesmo tempo tão incapaz de a devorar? Por que não alimentar a esperança de lhe arrancar a narração de como construíra a aura rebelde em altura tão inclemente para com o exercício a céu aberto do desplante de mau porte?
Do historial da antiga ambulante do peixe já alimento de humanos depois da morte por asfixia, que graças a ela transitava diretamente da lota, na praia, para as cozinhas das donas de casa, emergia a linguagem com que retrucava aos autores das provocações que lhe farpeavam a reputação, recorrendo sempre que preciso ao reportório obsceno, disponível tanto para a mais leve como para a mais ousada insinuação se tinham a má fortuna de chocar com ela em dia de astral negativo.
Ofender a Vitória na via pública (e muitos a espicaçavam só para lhe ouvirem as bojardas) era conceder passaporte a uma infinidade de palavrões para viajar sem freio no espaço sonoro, recatado e pio, da Vila daquele tempo. Expressões só aceitáveis nos lábios das prostitutas em suas reservas vigiadas ou típicas de marmanjos perdidos de bêbados no trato entre si davam-se ao escândalo de enfeitar as réplicas daquela mulher, de ofício tão útil à comunidade, que delas fazia uso com um poder de fogo assombroso, à queima-roupa – como um pistoleiro destemido das fitas de cowboys (então ainda não chamadas, entre nós, westerns).
O que restaria da bravia mulher-macho de porte altivo, verbo desbragado e, em simultâneo, criatura inteiramente feminil, de físico escultural, não obstante o estrabismo muito vincado, ocupante ainda de um pequeno canteiro iluminado nas recordações do improvável homem de letras (que então nem homem era e muito menos de letras), quando veraneante na Vila a que agora ocasionalmente regressara?
Lá a descobriu à custa da pupila fora do lugar, defeito nunca submetido a cirurgia corretora.
Deu por si ante um ser desmanchado. Sobras. Ruínas. Ferrugem. Confirmou apenas:
“É a Vitória?”
“Sou eu, sim.”
Fechou os olhos e ainda a viu, de canastra à cabeça, bela e terrível, no meio da rua, a mandar ‘pró carvalho’ um que a saudara: “Olá, Boazona!”
Pôs-se a andar, sem ter chegado à conversa com ela, a perguntar-se por que raio de pancada lhe dera para ali. Afinal, só queria achar o tema do artigo para a revista. Oportunidade gorada.
Ou não?
O cromo do futuro sem futuro comprometera irremediavelmente a magia do projeto.

Júlio Conrado


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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