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Os maus da cidade

Da mesma forma que estereótipos e preconceitos levam um inocente para a esquadra, um jornalismo sensacionalista ofusca e quase destrói o trabalho de vários anos de uma escola

Zona suburbana de Lisboa. Num bairro isolado de tudo e todos, devido às vias rápidas que o circunscrevem, um grupo de mulheres aprende a ler e a escrever. São todas cabo-verdianas, todas negras. A formadora, mestiça, trabalha com elas a partir de assuntos introduzidos por todas, geradores de aprendizagem.
Descobrem, à medida que aprendem a ler, que a vista de muitas já precisa de óculos.
O dinheiro não chega. Com a recém adquirida competência, não só da escrita, mas do poder nela contida, explicam, por carta, o que pretendem, a quem tem como difundir a mensagem: a televisão. E são convidadas para participar numa emissão em direto, para explicar na primeira pessoa o que procuram.
Preparam-se todo o dia para o evento. A formadora e o seu companheiro disponibilizam-se para levar umas mulheres de carro para a estação de televisão, que tem o estúdio num outro local periférico. Ligar os dois pontos da periferia por transporte público é tarefa irrealizável...
Ao sair do bairro, a polícia manda parar o carro. Os documentos do carro e do motorista são escrutinados. Sem motivo aparente, não têm autorização para seguir: um problema com o controlo à distância de eventuais, mas inexistentes, multas para pagar é a causa. O tempo passa. A jovem formadora solicita celeridade já que são esperadas para a tal emissão em direto.
Mandam-na calar de forma brusca. O companheiro intervém. Ao sair do carro é algemado e será levado para a esquadra.
O carro fica no lugar, as senhoras seguem de táxi. A formadora apresenta em direto e com um sorriso o seu trabalho; ao mesmo tempo teme pelo seu companheiro. No tribunal, no dia seguinte, a juíza faz uma advertência: não houve motivo para a detenção.
O jovem é imediatamente libertado. Os dois decidem colocar um processo ao polícia por abuso de autoridade.

Mesma zona suburbana, outro bairro. Uma escola acolhe a população jovem, de várias zonas periféricas, para cursos gerais e profissionais. Acolhe quem é recusado noutros locais: muitos negros portugueses e estrangeiros, muitas nacionalidades, muitas culturas, mestiçadas ou não. A equipa de professores orgulha-se do longo trabalho – às vezes de três ou quatro anos – de acompanhamento para devolver aos jovens a sua autoestima e um projeto de vida que lhes foi tirado ou negado nas instituições normalizantes e trituradoras por onde passaram e onde encontraram funcionários-instrutores, na grande maioria branca e de classe média.
A escola é conhecida e referida pela positiva entre quem a frequentou e quem a frequenta. Rapidamente, quem entra nela afirma publicamente que a considera um dos lugares mais seguros de toda a zona.
Mas ela é mais do que isso. Com grande profissionalismo, alunos e professores conseguem locais de estágio e contratos de trabalho com empresas de Lisboa até ao Algarve, enquanto outros alunos se preparam para o ingresso na escola superior.

Um jovem negro é esfaqueado por estar no sítio errado no tempo errado. Refugia-se naquela escola, lugar seguro, onde acaba por morrer devido aos ferimentos sofridos.
Algumas semanas mais tarde, outro jovem é agredido e refugia-se atrás do mesmo portão protetor. Sobrevive.
Porém, da mesma forma que os estereótipos (para não falar de preconceitos) levam um inocente para a esquadra, um jornalismo sensacionalista, que associa a existência de uma escola com cursos profissionais e uma grande população migrante e portuguesa negra com instabilidade, violência, falta de regras e moral, ofusca e quase destrói o trabalho de vários anos de uma escola.
As mulheres cabo-verdianas, a formadora, os jovens e os professores da escola vão diariamente além da análise pobre das relações sociais, aquela que recorre a lugares comuns e preconceitos prejudiciais para quem os sofre e quem os manifesta. As mulheres interpretam a informação que as torna independentes; os jovens interpretam a informação que lhes permite concretizar o seu projeto de vida.
As mulheres, os jovens, a formadora e os professores procuram interpretar o mundo que os ignorantes da cidade vivem e apresentam a partir da sua leitura, limitada e não refletida, da heterogeneidade.
Diferentes desses, envolvem-se em projetos, em contextos de aprendizagem, mais formais ou menos formais, nos quais se colocam como aprendentes com pontos de partida diferentes.
Na escola e no local de formação desta zona suburbana de Lisboa, sujeitos-autores de projetos de trabalho investem na descodificação da informação a partir de uma multiplicidade de olhares, procurando contrariar a homogeneização assustadoramente empobrecedora. Um trabalho lento e necessário na sociedade normalizada, com as suas instituições disciplinadoras, onde os mal-informados da cidade transformam em maus os informados da cidade.

Pascal Paulus


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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