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Indisciplina

O conceito de indisciplina, geralmente, é estabelecido com relação ao conceito de disciplina. De origem latina, a palavra disciplina apresenta a mesma raiz da palavra discípulo (discipulus), que significa “aquele que aprende”. Liga-se, ainda, ao verbo latino discere, “aprender”. Nesse sentido, a palavra disciplina encontra-se etimologicamente relacionada à ideia de instrução, ensino, educação e aprendizado.
Contudo, ao longo dos tempos, esse conceito vem sofrendo uma série de ressignificações, e, atualmente, é marcado por polissemia. Isso pode ser constatado quando se recorre aos dicionários, onde a palavra disciplina aparece relacionada a uma multiplicidade de significados, entre os quais se destacam: “ensino, instrução e educação”; “regime de ordem imposta ou livremente aceita”; “ordem que convém ao funcionamento regular de uma instituição”; “relação de subordinação do aluno ao mestre”; “observância de preceitos ou normas”; “submissão a um regulamento”; “um ramo do conhecimento”; “obediência à autoridade”; “castigo”; “mortificação”; “punição” [Ferreira, 1986; Michaelis, 1998].
Em seu sentido mais usual, a palavra disciplina tende a designar um conjunto de regras e procedimentos que regulam a vida dos indivíduos no âmbito de uma determinada instituição.
Esse conjunto de regras e os mecanismos empregados para colocá-las em funcionamento no interior das escolas e das salas de aula constituem o que comumente se chama “disciplina escolar”. Para muitos autores, o aprendizado por meios de regras que visam determinar e controlar os padrões de conduta das crianças e jovens constituiria um traço marcante do modo de socialização inaugurado pela escola. Nessa ótica, as regras seriam inerentes à própria relação pedagógica, uma vez que, na escola, os alunos estudam e aprendem por meio de regras específicas que tendem a controlar, por exemplo, as suas atividades, os seus horários, as suas vestimentas, as suas falas e os modos de se relacionarem com os colegas e com os professores.
Embora inerentes à relação pedagógica, o conjunto específico de regras e procedimentos disciplinares nas escolas depende sempre do contexto histórico, político e cultural das sociedades em que essa escolarização acontece. Isso significa dizer que os sistemas de disciplina empregados pelas escolas, além de bastante diversificados, evoluem ao longo da história, acompanhando as transformações ocorridas no mundo político, na vida econômica, no campo cultural e no pensamento pedagógico.
Nas sociedades ocidentais, por exemplo, temos assistido historicamente a uma progressiva substituição de uma compreensão da disciplina como conformidade exterior às regras e aos costumes por uma concepção que tende a valorizar, sobretudo, a interioridade e o engajamento livre do indivíduo: a chamada autodisciplina [Estrela, 1992]. Seguindo essa linha, pode-se afirmar que cada estabelecimento de ensino apresenta um sistema disciplinar próprio, com suas regras, suas formas de controle, suas sanções e seus níveis de tolerância aos desvios.
Embora a disciplina escolar possa assumir, em algumas sociedades, épocas, pedagogias ou estabelecimentos de ensino, uma forma bastante autoritária, austera e baseada na coerção e punição dos estudantes, em outros contextos, ela pode desenvolver um caráter mais progressista e democrático, ao se fundamentar em princípios como a justiça, o diálogo, a dignidade humana, a autonomia e a liberdade. Ademais, a disciplina escolar, além de exercer a importante função de meio educativo, pois busca permitir que o trabalho pedagógico se realize, também se configura como um fim educativo, na medida em que cumpre a função de preparar os alunos para viver em um mundo social pautado por regras.
Percebe-se, portanto, que a ideia de disciplina é indissociável da ideia de regra e de obediência.
Logo, a indisciplina tende a ser definida como sendo a negação ou o não cumprimento das regras estabelecidas ou mesmo pactuadas no ambiente escolar. Muitas vezes, denota a própria perturbação ou desordem causada pelo seu não cumprimento.

Artigo publicado ao abrigo do protocolo com a revista brasileira “Presença Pedagógica”


Porém, no seu percurso histórico, as palavras disciplina e indisciplina passaram a ser marcadas por várias conotações.
Hoje, tendem a evocar não apenas a observância ou não dessas regras, mas também as sanções provenientes de seu não cumprimento e o impacto doloroso que elas podem causar nos sujeitos. Esse tipo de associação tem contribuído para o caráter pejorativo atualmente aliado a esses vocábulos, tornando menos comum o seu emprego entre os educadores [Estrela, 1986]. Como observa Prairat [2003], existiria por parte de alguns educadores e pesquisadores certo sentimento de anacronismo em relação ao emprego dos conceitos de disciplina e indisciplina, como se eles não mais pudessem compor o vocabulário pedagógico contemporâneo.

Indisciplina ou violência?

Até a década de 1980, o termo indisciplina era empregado correntemente para designar os vários comportamentos perturbadores às regras no ambiente escolar.
Atualmente, esse conceito tem se tornado pouco eficaz para descrever e interpretar alguns comportamentos graves observados nos estabelecimentos de ensino. Por isso, esses comportamentos têm sido frequentemente analisados sob a designação de “violência escolar”.
Segundo alguns autores, existiria no meio educacional uma forte tendência a se abandonar o uso do conceito clássico de indisciplina em favor de uma designação mais genérica como “atos de violência” [Silva & Nogueira, 2008; Amado, 2004; Prairat, 2003]. Nas últimas décadas, condições políticas e sociais específicas, como o reconhecimento dos direitos sociais e o aumento do exercício da cidadania pelos sujeitos, ampliaram o conceito de violência, estendendo-o a comportamentos que antes eram percebidos como práticas corriqueiras no mundo social.
Por isso, tem sido frequente, no meio educacional, a discussão em torno da pertinência de se empregar o conceito de violência escolar de uma forma demasiadamente alargada, confundindo ou incorporando o conceito de indisciplina. Autores como Prairat [2003] defendem que o conceito de violência se limite aos atos previstos pelo Código Penal. Esse autor denuncia um processo de colonização do discurso pedagógico atual pelo conceito de violência, a ponto de “eclipsar” o conceito clássico de indisciplina. Ele chama a atenção para os riscos políticos, epistemológicos e educativos de uma definição muito ampla do conceito de violência escolar.
Entre os diversos riscos, alguns autores têm destacado o perigo real de se criminalizarem comportamentos escolares triviais e de pequena gravidade, o uso frequente e aparentemente desnecessário das forças policiais na resolução de conflitos eminentemente escolares e a destituição de importância pedagógica, social e científica dos comportamentos típicos de indisciplina, que, embora causem pouca comoção pública e sejam aparentemente inofensivos, teriam forte impacto no clima escolar e na aprendizagem dos estudantes. Esses autores, mesmo reconhecendo a existência de semelhanças entre os dois fenômenos, defendem a possibilidade e a necessidade atual de uma distinção mais precisa entre os conceitos de indisciplina e violência. Isso possibilitaria clarificar melhor os tipos de comportamentos que tais conceitos descrevem e abrangem. Grosso modo, a tendência tem sido diferenciar indisciplina de violência com base no tipo de regra que esses comportamentos violam, no impacto imediato que eles gerariam no ambiente escolar e na gravidade intrínseca que comportam.
Dessa forma, a indisciplina tem sido frequentemente associada aos comportamentos não tão graves que, de alguma forma, violariam regras estritamente escolares.
Como enfatizam Silva & Nogueira [2008], trata-se de comportamentos que, conforme dizem os próprios professores, burlariam as regras escolares, dificultando o “bom andamento da aula”, e, em certos casos, chegando a questionar a autoridade docente. Por apresentarem pouca gravidade intrínseca, esses comportamentos tenderiam a ser condenados mais em função da perturbação que geram no ambiente escolar do que pelas consequências imediatas que poderiam acarretar à integridade física ou psicológica dos sujeitos que deles são alvos ou que neles se encontram envolvidos. Por isso, desde que não sejam frequentes, tais comportamentos tendem a ser ignorados pelos professores.
Como ressalta Silva [2007], em certas circunstâncias, os comportamentos de indisciplina são capazes, até mesmo, de contribuir para a vitalidade de uma turma, ao descontraírem os alunos e desfazerem a tensão e cansaço gerados pela rotina escolar. É, portanto, à medida que se tornam demasiadamente frequentes que os comportamentos de indisciplina passam a assumir maior gravidade, perturbando a relação pedagógica e impedindo que a aula transcorra num clima de tranquilidade.
Já a violência escolar tem sido mais associada aos eventos de natureza grave, que ferem regras sociais mais abrangentes e que têm a capacidade de causar danos físicos, morais, psicológicos ou materiais às pessoas ou às instituições que deles são alvo. Assim, embora permaneça aberta a discussão em torno de uma definição precisa de violência escolar, a maioria dos estudos tende a apontar a existência do poder destrutivo, da coerção, do uso da força física e das figuras do agressor e/ou da vítima como elementos consensuais que caracterizam a violência. Esse é o caso dos assassinatos, dos roubos, do porte de armas, do tráfico de drogas, das ameaças, das agressões físicas ou psicológicas, comportamentos que, devido a sua enorme gravidade intrínseca, são fortemente condenados e penalizáveis em todas as esferas da vida social, e não somente nas escolas.
Em muitos casos, os comportamentos comumente designados como atos de violência escolar poderiam facilmente ser enquadrados como crimes quando protagonizados por adultos ou como atos infracionais quando protagonizados por adolescentes. 

 

Luciano Campos Silva
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto
lucianocampos@ichs.ufop.br


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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