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Foram brotando como num jardim

Tem coisas da gente que não são defeito nem erro: são só jeito da gente ser [Caio Fernando Abreu]

“Cabe perguntar aos incomodados: qual a tipologia permitida longe dos guetos? Quem pode ser socialmente representável na cultura homossexual e quem não pode? Quem pode existir?” – são perguntas de Marcos Uzel, jornalista e mestrando em Cultura, pela Universidade Federal da Bahia, em texto que escreveu sobre a questionável imobilidade dos gêneros. Estão aqui para interrogar a todos nós.
Há anos, em escolas do Rio de Janeiro, desenvolvo o projeto Pro Dia Nascer Feliz, no qual discuto e faço discutir, com muitos outros, a diversidade de expressão e de orientação sexual dentro fora das escolas – no grupo de pesquisa em que desenvolvo o meu mestrado, usamos esses termos e outros (leva traz, aprende ensina), assim grafados, para mostrar os limites que as dicotomias herdadas das ciências que se desenvolveram na modernidade têm significado para o que é necessário criar e compreender na sociedade contemporânea, em seus cotidianos...
O projeto enfrenta a necessidade de discussões sérias sobre as sexualidades e as questões ligadas a lesbohomotransfobia, nas escolas e nas múltiplas redes educativas. São de sua quinta edição, em 2010, a apresentação e a participação de alguns alunos “montados” – vestidos com vestidos – que acompanham este artigo.
Crescentemente, no Brasil, vamos entendendo que é fundamental romper a estrutura de escolas que funcionam dentro de uma visão hegemônica heteronormativa, que entende que a sexualidade correta é a heterossexualidade, reafirmando o poder da raça branca e do gênero masculino.
Uma das tarefas, em educação, é que a repensemos, continuamente, inclusive nos modos como em processos curriculares e pedagógicos se pode romper com a invisibilidade de seres humanos, fazendo-os aparecer em sua integralidade. Cada vez mais, através de estudos das inúmeras redes educativas que formam e nas quais são formados, os seres humanos vão fazendo ver que não é possível a existência de cisões nos múltiplos dentro fora das escolas, pois a cada vez que um estudante ou docente atravessa, para lá ou para cá seus muros, leva traz tudo o que é, o que aprende ensina e o que cria.
A compreensão da cidadania, hoje, exige o respeito às múltiplas diferenças, de todos os tipos, criadas pelos seres humanos e neles existentes, como à resposta que um estudante me deu: “pode deixar, professor, virei maravilhosa só no ‘truque’”. “Dar o truque” significa, entre as travestis, enganar, fazer-se passar por, se virar com o que se tem, otimizando atributos físicos e habilidades em geral (Larissa Pelúcio, Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids).
Fazendo uma busca pelas minhas memórias enquanto estudante e professor, as atividades didáticas que mobilizam as escolas no decorrer do ano letivo estão, de maneira hegemônica, baseadas na heteronormatividade, negando a possibilidade de que estudantes – enquanto
LGBTTQI [lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros/ transexuais, queer, intersexuais] – participem sem medo na luta contra os efeitos das verdades impostas. Como argumenta o jornalista argentino e professor de português Bruno Bimbi, no texto Adolescencias Robadas: “de todas as coisas da vida que proibiram a nós, gays, a adolescência é a mais injusta”.
Para trabalhar com isso, precisamos falar em ‘mergulho’ e não ‘observação’, porque sabemos que a vida cotidiana desses e dessas praticantes não se reduz àquilo que é observável e organizável formalmente. Os múltiplos sentimentos, valores e processos vividos por cada um(a) na tessitura das redes de conhecimentos e significações que dá sentido às suas ações precisam ser compartilhados coletivamente e, para fazê-lo, precisamos estar imersos em muitas histórias ouvidas e partilhadas (Nilda Alves e Inês Barbosa Oliveira, Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas).
Nessa semana de 2010, dois alunos vieram me perguntar: “professor, podemos nos montar?”
Segundo Silvinho Fernandes, ator transformista que atua nas noites cariocas com a sua Sissy Diamond: “montar, para mim, é viver um personagem, construir a alma de uma mulher vinda de fora para dentro, deixar a fantasia me levar; se montar é criar-se, divertir-se, autoconhecer--se. Realizar! É o momento onde estou livre, inteiro e sem medo de nada.”
Isto foi dito, nesse dia, em resposta a uma professora indignada, a ponto de afirmar: “eles foram brotando, cada dia aparecia mais um”, em alusão aos alunos montados.
Segundo Guacira L. Louro (Sexualidade e Educação: uma perspetiva pós-estruturalista), no combate às discriminações quanto à sexualidade, e outras, precisamos dar atenção às práticas rotineiras e comuns, aos gestos e às palavras banalizados, desconfiando do que ‘parece normal’.
Desse modo, é preciso afirmar que elas não “brotam”, já que as sexualidades estão presentes, nas escolas, pelo fato de fazerem parte do modo de ser de seus ‘praticantes’.
Não é como um interruptor de eletricidade que pode estar ligado ou desligado. E qual o problema de dar “pinta”? E por que não vivenciar isso nas escolas se, muitas vezes, essa atitude não é permitida em outros espaços tempos?
Afinal, como Michel de Certeau, sabemos que “depois de ter aproximado das formações linguísticas os processos caminhatórios, pode-se rebatê-los para o plano das figurações oníricas, ou ao mesmo descobrir nessa outra face aquilo que numa prática do espaço é indissociável do lugar sonhado”.

António Pinheiro

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Laboratório Educação e Imagem (mestrando)
Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita a grafia original do texto


  
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Edição:

Edição N.º 197, série II
Verão 2012

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