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JOSÉ RODRIGUES: poeta da condição humana

A PÁGINA foi tomar café à Fundação José Rodrigues e conversou com o escultor, que vai ser homenageado pela Bienal de Cerveira e inaugurar uma exposição de 16 cenários, também em Vila Nova de Cerveira.

“Autor de uma vasta obra nos domínios da escultura e do desenho, mas também da medalhística, José Rodrigues atravessou fases de experimentação e momentos de puro virtuosismo, não recusou uma representação cultural activa nas mais diversas situações e enfrentou reparos generalizados a um narcisismo invasor e críticas a um alegado comodismo em modelos já ensaiados, repetidos de cor, a que começaria a faltar alguma alma. José Rodrigues distanciou-se dessa suposta sobranceria com a autoridade que lhe vem do domínio inegável de tantas técnicas, da imensa facilidade plástica com que submete os materiais, do incomparável talento para manobrar motivos e construir histórias”.
[Laura Castro, O Sentimento Trágico da Vida, Edições ASA, 2003]

Referência nas artes plásticas nacionais, José Rodrigues nasceu em Luanda (1936) e concluiu o curso de Escultura (1963) na Escola Superior de Belas-Artes do Porto (ESBAP), onde viria a ser professor. Com Ângelo de Sousa (recentemente desaparecido), Armando Alves e Jorge Pinheiro constituiu (1968) o grupo Os Quatro Vintes – nome que advém da circunstância de todos terem obtido a classificação máxima e que remete para o então popular maço de cigarros “Três Vintes”. Fundador da Cooperativa de Ensino Artístico Árvore (Porto, 1963) e da Bienal de Cerveira (1978), mais recentemente, adquiriu e recuperou uma antiga fábrica de chapéus (Fábrica Social) situada no bairro operário da Fontinha, no Porto, transformando-a num centro cultural e sede da fundação com o seu nome. Inaugurado em 2008, o complexo dispõe de 20 ateliês, salas de exposições, auditório, residências temporárias e restaurante-bar. Foi aí que recebeu a PÁGINA.
A par da actividade artística, que da Escultura se estende ao desenho (“o que eu gosto é de transformar histórias em desenhos”), cerâmica, medalhística e cenografia, José Rodrigues foi professor durante muitos anos. Até se desiludir: A escola era uma coisa monótona, um sítio de fórmulas repetitivas, e eu sempre recusei isso. A criatividade está acima de tudo, não é?
No entanto, o clique para deixar a Escola de Belas-Artes deu-se quando começaram a tratá-lo por “mestre”. É verdade. Naquele caso, também era uma fórmula. Não o mestre pedagogo, que desoculta caminhos, que suscita descobertas… Nada disso. Era ó mestre, ó mestre… Eles não sentiam nada. Era uma fórmula. Estratificação. Também por causa das Belas-Artes, há anos que José Rodrigues defende que a Educação e a Cultura devem estar sob a mesma tutela. Sabes porquê? Foi a altura em que a ESBAP se espartilhou. Nós estávamos num ministério único, A. Vieira um café com mas depois, com os arquitectos, desfez-se tudo. Já era um curso superior, mas houve necessidade de criar uma faculdade, e foi o fim. Para mim, foi o fim da Escola.
Já agora, uma questão da actualidade: o que pensa o escultor – para contornarmos o “mestre” – da passagem das universidades públicas a fundações de direito privado? Se isso corresponder a mais autonomia, apoio. Se é mais um papel, não.
Um gole de água, que está muito calor, e mudança de assunto.
Enquanto criador e agente cultural instalado na cidade do Porto, o balanço que José Rodrigues faz da política autárquica para a cultura é negativo. Porque não é criativa – uma cidade que não tem a criatividade como modelo, está condenada. E como é que uma Câmara deve/pode lidar com a criatividade? O escultor considera que é preciso dar aos portuenses o orgulho de serem os senhores do seu destino. Tem de ser a Câmara a fomentar esse orgulho de ser cidadão. Ser cidadão, é ser senhor do destino, do seu destino.
E sendo certo que isso não se resolve por decreto, haverá alguma “pedagogia para a criatividade”? Há. Não a proibir. Mas também se levanta a questão de saber o que é criativo e o que não é... Coloque-se à discussão. É fundamental discutir. Ainda no Porto, é frequente ouvir dizer que a Câmara de Rui Rio esvaziou a cidade de cultura – começou por manifestar alguma animosidade relativamente à Casa da Musica, “desmunicipalizou” o Teatro Rivoli e por aí fora – e que a revitalização da Baixa passa, essencialmente, pela animação nocturna na área envolvente dos Clérigos. Pois, é um bocado fogachos… Gostava que fosse uma coisa com mais alicerces, uma coisa mais profunda.
Nessa perspectiva, José Rodrigues considera saudável o movimento das galerias (Miguel Bombarda). Mas diz ter informação de que aquilo é apenas para uma determinada clientela. É preciso criar também um movimento cultural. Se não, abrir galerias só por abrir, não vale a pena! Estão condenadas ao fracasso. Ao contrário, Serralves é muito importante para a cidade. É um pólo dinamizador. Não é só inauguração de acontecimentos, tem lá coisas…
Do Porto para Guimarães, que vai ser Capital Europeia da Cultura. Enquanto artista, e olhando para o que foi o Porto 2001, o escultor espera que Guimarães 2012 deixe ficar uma marca, que não seja uma mera sucessão de acontecimentos. Isso aconteceu em 2001? Acho que o Porto tem marcas: a transformação da Ribeira, a Casa da Musica… Há muita coisa, pá.
E a questão, recorrente, da criação de novos públicos para as artes? Isso é urgente, porque a Arte tem códigos. Tem que se ensinar nas escolas, porque tem de se aprender de pequenino. Só se aprende a falar, falando, não é? Nas artes é igual.
O nome do escultor está associado à criação de dois cursos de Arquitectura, na Árvore e em Cerveira. Há alguma relação com a Escultura? Não. A Arquitectura é para ver por dentro; a Escultura é para ver por fora. É a definição. Eu admitia que, em certa medida, ser escultor também é ser arquitecto, ou vice-versa…
Não, ser homem é ser tudo. O homem é um criador, tem de ser tudo; se não, não vale a pena viver. E se não fosse escultor, gostava de ser arquitecto? Não, quero ser escultor!
A Fábrica Social é o grande projecto da sua vida? Não, é só mais um, e tenho a sensação de que já não sou capaz de o levar até ao fim. Mas é só uma sensação. Portanto, não o dá como concluído?
Não, vai-se fazendo. Contigo e com toda a gente. Tem algum valor específico o facto de se ter instalado no miolo de um bairro operário? Era uma fábrica em ruínas, e para mim não teve grande discussão, porque a ruína também me fascina. O apelo veio-me da ruína, de pôr tudo isto novamente em pé… Não estará tudo, mas já está uma parte bem significativa.
José Rodrigues foi um dos pioneiros da Bienal de Vila Nova de Cerveira. Valeu a pena, pá! Depois, ter-se-á afastado, ou desinteressado. Apareceram outros, foi o crescimento. Mas foi coisa pacífica. Agora até me vão fazer uma homenagem.
Mais do que justa, considera o autarca local, José Manuel Carpinteira. A homenagem deverá acontecer na abertura da 16ª Bienal, que decorre entre 16.Jul.–17.Set., e no dia 30 de Julho, no Convento de Sampayo, haverá uma conferência com a participação de Miguel Veiga, Laura Castro, Jorge Pinto e o homenageado. Nesse mesmo dia, é inaugurada uma exposição de cenários (16, dos 33 que Rodrigues produziu), que, posteriormente, entrará em itinerância.
A terminar a conversa: numa das entrevistas desta edição fala-se de solidões. O tema diz-lhe alguma coisa?
Para alguns é uma arte, caso do Eugénio de Andrade – a solidão fazia parte da maneira de ser dele. A solidão é uma condição do ser humano e é fundamental para construir, para criar. É isso....

António Baldaia

Alguns dias antes da conversa com a PÁGINA, José Rodrigues foi confrontado com a morte do amigo Ângelo, outro dos Quatro Vintes, que fez questão de homenagear aqui com a publicação deste desenho. Estudioso da cor e da luz, Ângelo de Sousa nasceu em Lourenço Marques, em Fevereiro de 1938. Mudou-se para o Porto em 1955 e licenciou-se em Pintura na ESBAP. Na actual Faculdade de Belas-Artes, foi professor até 2000, quando se jubilou como professor catedrático. Depois disso, foi distinguido com o Prémio Gulbenkian (2007), representou Portugal na XI Mostra Internacional de Arquitectura de Veneza (2008), com o arquitecto Souto de Moura, e foi retratado por Jorge de Silva Melo no documentário "Ângelo de Sousa: Tudo o que sou capaz" (2010). Quem com ele conviveu diz que era uma personalidade generosa, cordial, extrovertida e irreverente. Morreu em Março, no Porto.


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

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