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Literacia para os media “em fase de nebulosidade”

A literacia está em voga. Associada aos media é, por vezes, substituída por educação. Mas nem sempre os termos são vistos como sinónimos. Debates à parte, este é um “L” com muitas implicações. A “sociedade em rede” obriga a novas literacias: digital, mediática, fílmica... Formam um plural ilustrativo das relações que os cidadãos estabelecem com o ‘ecossistema’ mediático. Um ambiente povoado pela internet, as redes sociais, os vide-jogos, a televisão, o cinema, a rádio, os jornais e revistas. Diferentes meios, suscitam análise e discussão sobre o modo como constroem a realidade. Esta é a ‘nuvem’ da literacia ou educação para os media. A Página reuniu opiniões de quem a estuda.

Diz-se muito sensível à necessidade de abordar a actualidade na escola, seja no ensino Básico, Secundário ou Pré-escolar. Sara Pereira, investigadora d o Centro d e estudos de Comunicação e Sociedade (CeCS), da Universidade do Minho (UM), acredita que promover a educação para os Media (epM) pode ser tarefa simples. Mesmo num jardim-de-infância.
“Basta tirar cinco minutos para dizer às crianças o que se passa no mundo, levando-as a comentar esses acontecimentos”. Uma actividade breve, mas que se pretende diária. Com resultados “muito enriquecedores”. Que podem “verdadeiramente contribuir para que as crianças sejam mais informadas”, garante a investigadora, e evitar a “situação recorrente” de ver os mais pequenos na televisão a dizerem que não sabem o nome do primeiro-ministro ou do Presidente da república. “Ter esse conhecimento faz parte de ser cidadão”, a firma Sara Pereira. e “neste aspecto, a escola tem um papel importante”.

Do papel à prática

Tornar possível a abordagem da epM nas escolas tem sido a tarefa do CeCS, uma unidade que reúne investigadores de diversas áreas das Ciências Sociais. “existe a necessidade de actualização e criação de novos recursos e é esse o nosso ponto de investimento”, diz Sara Pereira. Depois da colecção de booklets sobre televisão, internet e videojogos («Como Tver», «Tudo o que vem à rede é peixe?», «Saltar para outro nível»), surge a agenda «25+Um», com propostas de actividades para todos os níveis de ensino, cuja versão electrónica pode ser descarregada no portal Literacia Mediática.
“São ideias para passar do papel à prática”, realça Sara Pereira. De que forma? “Pela análise e desconstrução dos media”, no sentido de “perceber em quê e até que ponto são construções, quer do ponto de vista da informação, quer do entretenimento”. Isto significa “não considerar o lado lúdico uma questão menor”, frisa.
“Importa também reflectir sobre o impacto dos media na sociedade, as linguagens que utilizam e a sua própria estética”, pois esta pode determinar a qualidade dos programas. Desta abordagem global, diz a investigadora, depende a compreensão crítica dos media, “tendo em vista a literacia mediática”.

Presença indirecta

No entanto, os currículos apenas se referem de “forma indirecta” a matérias que envolvem os meios de comunicação. Através de “alguns conteúdos”, presentes, por exemplo, nas disciplinas de Português e Inglês. Mas “nunca numa perspectiva da epM”, lamenta Sara Pereira, que defende “um melhor aproveitamento dos espaços curriculares já previstos” – “sem dar mais trabalho aos professores e pensando apenas numa outra forma de abordar os conteúdos”, realça a investigadora. “Bons exemplos” de como isso é possível foram registados no estudo Educação para os Média em Portugal, apresentado durante o congresso nacional de Literacia, Media e Cidadania, que decorreu em Março, na Universidade do Minho.
As experiências vêm sobretudo da Área de Projecto e da Formação Cívica. Mas, segundo Sara Pereira, limitam-se a contrariar a realidade da maioria das escolas. Primeiro, “porque a epM não está explícita nos currículos”; depois, porque “os professores não estão motivados, nem têm formação para fazer esse trabalho”.

Retrato da EpM

Coordenou a pesquisa que fez o retrato do estado da epM em Portugal, onde se confirmou a ausência de uma direcção concertada, apesar de terem sido identificadas boas práticas nesta matéria. As conclusões não surpreenderam, mas inquietaram Manuel Pinto: “Só não é grave, porque, apesar de tudo, alguma coisa se vai fazendo”, constata o professor e investigador da UM.
Ligados à Comunicação. Uma transferência confirmada nas universidades do Minho e do Algarve (“as duas principais escolas nesta área”), que o investigador acredita poder ser significativa para o futuro da epM em Portugal.

Reflectir a prática

“Formar quem, como e para quê?”. A pergunta implica um debate urgente. “Seria importante que os fazedores dos media reflectissem sobre as suas práticas”, diz vítor reia-Baptista, “saber se formam ou formatam os públicos a que se dirigem”. Mas a “falta de tempo” impede os profissionais, uma vez inseridos no mercado, de fazerem esta reflexão, constata o investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) da Universidade do Algarve (UA). Uma contradição cuja síntese cabe às universidades fazer, “possibilitando a análise, absolutamente necessária, sobre a dimensão pedagógica dos media durante a formação inicial”.
A completa literacia dos media, defende reia-Baptista, requer competências ao nível da contextualização cultural, da crítica e da criatividade. Mas o domínio dos “Cs” conhece vários estádios, que sugerem diferentes formas de “intervir para formar”, explica o investigador.
Encomendado ao CeCS pela entidade reguladora para a Comunicação Social, o estudo identificou várias experiências. Mas nenhum enquadramento geral que permitisse potenciar e ultrapassar o âmbito esporádico, diz Manuel Pinto, metaforizando: “existem meteoros, mas sem via Láctea!”
Apesar do cenário, o investigador vê um sinal de esperança, tanto nas iniciativas das escolas, sobretudo ligadas à elaboração de jornais escolares, como em projectos promovidos por entidades privadas: Público na Escola e MediaLab (Jornal de notícias e Diário de notícias), na área do jornalismo; a iniciativa Media Smart (Associação Portuguesa de Anunciantes), ligada à publicidade; e o projecto Literacia Digital (Microsoft), que foca a internet.
Porém, há quem veja estas actividades como formas inteligentes ou disfarçadas de marketing organizacional, remetendo para a escola o trabalho realizado por estes actores. Manuel Pinto não desmente a intenção comercial por trás da educativa, aceitando esta vertente “desde que os objectivos sejam claros”. “É com contributos de vários lados que a epM pode singrar”, afirma.

Escola imprescindível

A escola é vista como um espaço imprescindível de epM, lê-se no estudo coordenado por Manuel Pinto, ainda que as actividades surjam tendencialmente no plano extracurricular, concretizadas em bibliotecas ou clubes escolares – que “tiveram a sua fase esplendorosa no final dos anos 80, princípios dos 90, quando os professores tinham crédito de horas para trabalhar neles”, recorda Manuel Pinto. Depois, critica o investigador, “houve um governo que acabou com isso”. e hoje “muitos clubes mantêm-se por activismo de professores que acreditam que a escola não pode limitar-se a dar aulas”.
E se “todos os caminhos vão dar à escola”, lê-se no estudo, a epM também tem lugar no ensino Superior. Fruto da reformulação curricular de Bolonha, a “pouca formação existente na área da epM” – insuficiente para responder às necessidades dos professores, segundo Manuel Pinto – foi “escorraçada” dos cursos de educação. Ao mesmo tempo, “e felizmente”, foi sendo assumida pelos cursos
“As gerações antigas são mais capazes de contextualizar”. Em parte, “porque tiveram uma formação mais abrangente em termos de generalização cultural”. em contrapartida, os mais novos “tiveram formações mais fragmentadas, logo descontextualizadas, e portanto têm mais dificuldades”.
Mais igualitária é a relação das duas gerações com o ‘C’ de crítica. “Somos muito críticos de tudo e mais alguma coisa, mas fundamentamos pouco as nossas opiniões”. e isso “reflecte-se em todos os sectores”, diz o investigador, dando como exemplo os discursos de políticos e economistas: “Dizem as maiores barbaridades e nós não lhes pedimos as fundamentações”. e quando se fala em fundamentar, é na investigação, adverte reia-Baptista, reconhecendo haver a esse nível “um grande défice”.

Fosso geracional

O ‘C’ da criatividade é quase endémico nas gerações mais velhas, nota o investigador da UA. no extremo, “os jovens foram adquirindo essa capacidade de forma autónoma, experimentando”.
“Porque tiveram mais dinheiro do que os seus pais e avós e menos medo de estragar o telemóvel ou a consola de jogos”. esta desinibição continua a potenciar o uso das capacidades criativas “de uma forma mais livre” do que a permitida às gerações anteriores.
Mas o dilema ganha outros contornos quando perspectivado em termos do ensino. Marc Prensky, especialista em videojogos e aprendizagem, problematizou o modo como as gerações lidam com o ambiente digital, dividindo-as em “nativos e imigrantes digitais”. os primeiros nascem na era da tecnologia e não conhecem dificuldades na sua utilização, os segundos imigraram de tempos menos digitais e tentam acompanhar as mudanças.
À luz desta dicotomia, como se posicionam as gerações mais novas quando educadas pelas mais velhas? e os professores são criativos? “Muito pouco”, responde reia-Baptista, “porque faltou criatividade na sua formação, demasiado virada para os aspectos estritamente racionais”.

Cinema contra a exclusão

Desenvolveu um projecto de epM com jovens de uma escola secundária, “dita problemática”, de uma zona urbana de Lisboa. Ao longo de seis meses, a pesquisa etnográfica foi registada num diário de campo, recentemente publicado, intitulado «Jovens, Media e estereótipos». raquel Pacheco, do Centro de Investigação Media e Jornalismo, da Universidade nova de Lisboa, usou o cinema de ficção para levar os alunos a reflectirem sobre temas reais: violência, cidadania e juventude.
O filme brasileiro «Cidade de Deus» e o português «Zona J» foram pretextos para levar os jovens a pensarem sobre o modo como se viam e eram vistos pela sociedade mediática que os rodeia. Mas o projecto não pretendia apenas o debate: “A meta era a mudança dos alunos”.
Com as dinâmicas desenvolvidas, raquel Pacheco quis provar a teoria que defende com paixão: “não existem jovens problemáticos ou violentos, mas sim jovens mal trabalhados ou com problemas familiares!”. o problema é social, garante. “A sociedade não está preparada para receber jovens que ficam na rua o dia inteiro, porque a mãe sai de casa às 5 da manhã e chega às 7 da noite”, acusa a investigadora. Para estes jovens, não será de estranhar que a rua seja tão ou mais acolhedora do que a escola. e esta, apenas mais um lugar onde ficar.
Por isso, raquel Pacheco não aceita ouvir críticas aos “jovens de hoje” por não se interessarem pelo estudo. “Mesmo na nossa época, a escola já era desinteressante”, contrapõe. o problema está na forma “sem interesse” como o currículo é trabalhado, “apenas para se cumprirem os longos programas”. Mas também no uso de um método “muito expositivo, onde não se aprofunda nada”.
Assim, “a escola vai ficando à parte da vida real”, do quotidiano das crianças e dos jovens que ensina. O desinteresse dos alunos é um argumento que Raquel Pacheco não aceita como justificação para a falta de respostas educativas.
Até porque, diz, em Portugal há pelo menos um exemplo do que pode ser o ensino ideal – o projecto desenvolvido na escola da Ponte, em vila das Aves. “Por que não se replica este modelo?”, questiona.

Real como nos filmes

“A escola deve retornar à realidade e trabalhar as questões do dia-a-dia”, defende Raquel Pacheco, que entende o papel dos media como crucial nesta aproximação, especialmente se desempenhado pelo cinema.
Tal como os personagens dos filmes, os jovens com quem Raquel Pacheco conviveu tinham condicionantes que os levavam à exclusão. “vinham de famílias super-desestruturadas, algumas monoparentais, outras em que os pais eram imigrantes ou moravam em bairros sociais”, “não tinham muito respaldo, nem como sair daquelas situações”. no entanto, “a escola acusava estes jovens, marginalizava e não interagia com eles”, indigna-se a investigadora.
Com uma vivência tão próxima da fílmica, os jovens confessaram a sua identificação com a história a Leonel vieira, realizador de «Zona J», que foi à escola no âmbito do projecto. Mas só até à primeira metade, a mais violenta. Depois, as cenas tornaram-se “novelescas”, cheias de “água com açúcar”. A ficção perdera a referência à sua realidade.
Uma percepção que Leonel vieira disse aos jovens estar correcta, relata raquel Pacheco. na conversa informal, o realizador revelou que a primeira parte da história correspondia ao que queria mesmo filmar. Já a segunda teria sido mais romanceada, por aspectos ligados à produção e aos imperativos do canal generalista onde o filme seria exibido.
Como exemplo do que pode ser feito na área da epM, Raquel Pacheco acredita que a experiência trouxe frutos. “não basta só analisar os media, e ponto. o mais importante é mudar o aluno, fazê-lo ganhar poder e crescer”.

Capacitar e proteger

A capacitação é a melhor defesa da criança quando navega na internet. “não é possível haver risco zero”, considera Cristina Ponte, responsável pela equipa portuguesa da pesquisa europeia EU Kids Online. Até porque o consumo “faz-se muito no quarto”.
Os dados foram recolhidos em 25 países europeus; um total de 25 mil crianças entre os 9-16 anos e pais foram inquiridos sobre os usos que fazem da internet. em Portugal, a pesquisa identificou que 67% das crianças usam a internet no quarto, bastante acima dos 49% de media para os restantes países. Mas basta olhar os dados de Espanha para perceber que a “cultura de utilização é bem diferente”, nota a investigadora: as crianças com permissão para usar a internet no quarto são menos de metade, cerca de 42%, valor abaixo da media europeia.
A explicação para as percentagens dos lares portugueses “tem muito a ver com a generalização do acesso ao portátil”, garante Cristina Ponte, dizendo serem fruto dos programas e.escola e e.escolinha, inseridos no Plano Tecnológico da educação. outra justificação reside na difusão do sistema wireless. A evolução veio permitir que os quartos se tornassem um lugar onde é possível ligar a internet, como qualquer outro espaço da casa, enquanto “há uns anos só havia uma possibilidade, que era um ponto de acesso via telefone”.
Soma-se às explicações o facto de os adultos considerarem o computador uma ferramenta de estudo, explica Cristina Ponte.
“Assim, quando a criança está na internet, os pais entendem que ela está a estudar; portanto, fá-lo no quarto, onde está mais tranquila”. Apesar dos riscos de um uso fora do olhar paterno, Cristina Ponte garante: “não temos nada contra a questão da criança ou o jovem usar a internet no quarto”. Basta pensar que o acesso sem supervisão também pode acontecer em casa de amigos ou noutros espaços. A questão coloca-se ao nível do acompanhamento que deve ser feito. “os pais devem conversar com a criança e ter interesse sobre aquilo que ela faz”, realça a investigadora.

Inclusão digital

Neste ponto, surge uma questão, colocada por diversas vezes aos investigadores. o acesso à tecnologia faz-se acompanhar de epM?
Cristina Ponte hesita: “Isso é transversal. A epM ainda está numa fase de nebulosidade”.
O projecto que coordenou em Portugal averiguou a generalização do acesso e, apesar de todas as crianças terem computador, “as condições de uso são bem diferentes”. explica Cristina Ponte: “Há crianças com meios para entrar neste universo de maneira mais integrada. e outras a quem o computador aparece como uma ilha dentro de casa”.
Nas famílias com menos recursos, Cristina Ponte tem constatado que “os pais têm muita dificuldade em acompanhar esta nova experiência dos filhos”. Portanto, “seria importante pensar como fazê-los sentir-se mais confortáveis e envolvidos”. este envolvimento poderá ditar o tipo de mediação que os adultos fazem dos consumos mediáticos de crianças e jovens. neste campo, o projecto concluiu serem as mães as mediadoras por excelência. “Isto significa que os homens têm a tendência para delegar nas mulheres o papel educativo e de acompanhamento dos filhos”. Uma tarefa nem sempre fácil, tendo em conta a cada vez maior presença feminina no mercado de trabalho.
Entre as mães europeias, os investigadores verificaram serem as portuguesas que mais trabalham fora de casa. e em profissões que não exigem o uso da internet. Sobre esta particularidade, Cristina Ponte constata a existência de “muitas mães infoexcluídas”. Uma situação que contrasta com o facto de serem elas a supervisionar a navegação dos filhos. “É um problema”, adverte. Solucioná-lo implica pôr em prática uma ideia que Cristina Ponte partilha com todos os investigadores da epM: “É preciso pensar como favorecer a inclusão digital das crianças, mas também a dos adultos, onde se incluem pais e avós”.

Andreia Lobo


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

Autoria:

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