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Escolhas no Superior: da filarmónica à orquestra de jazz…

A pressão a que a organização académica está hoje sujeita, sob o ponto de vista da produtividade (quer esta se meça pela produção de artigos académicos, quer pela empregabilidade dos formados), não deixa de evidenciar, do lado da oferta educativa, o abandono crescente do jazz em favor da filarmónica.

A metáfora orquestral é emprestada por Alexandra Prado Coelho («Pública», 11.05.2011) e procura traduzir as características imprescindíveis às organizações contemporâneas, características que lhes permitam melhor fazer face às necessidades de inovação permanente, de adaptabilidade a uma procura sempre ávida do novo, do distinto, do exclusivo, da combinação das mais diversas influências; em suma, organizações menos determinadas por um modelo fordista de produção – onde o maestro rege a orquestra e todos entram à ordem da sua batuta – e mais determinadas por modelos criativos, onde o espaço do improviso e do génio individual ou colectivo requer um funcionamento mais reticular e o alimento da discussão de ideias. Pressupostos extensíveis a todas as organizações, encarando a diversidade dos modos de trabalho, das abordagens profissionais, a partir do princípio da diversidade, mas igualmente da crescente afirmação das singularidades.
Seriam estes os pressupostos determinantes nas escolhas das formações a cursar no Ensino Superior, embora o denominador destas escolhas pareça radicar antes numa arreliante prédica do sucesso (mais do que numa súbita estreiteza do engenho e da criatividade humana), a qual já não se traduz em qualquer espécie de mobilidade social ascendente (legítima aspiração que as gerações projectavam sobre os seus progenitores), mas antes na adaptabilidade “àquilo que está a dar” – do casamento arranjado de outrora para garantir a permanência da vinculação da propriedade à filiação evolui-se hoje para o título arranjado, aquele que garante a empregabilidade, aquele que traduz uma sustentabilidade da elite.
É esta correspondência entre determinadas áreas de estudo, por um lado, e um certo conceito de elite, por outro, que parece criar uma espécie de acordo tácito entre estruturas ministeriais, professores, serviços de orientação vocacional e pais, em torno de áreas nobres e da ideia de desperdício que é um bom aluno investir em áreas menos nobres, ainda que nelas manifeste especiais credenciais.
A filósofa Martha Nuss baum (na foto) fala de uma “crise planetária da educação” («Courrier Internacional», Setembro/2010), cujos efeitos antecipa muito mais prejudiciais para o futuro da democracia do que os efeitos da crise económica.
Dificilmente se separará uma da outra, até porque, em alguma medida, é esta que estará na origem de alguns dos maiores malefícios sobre aquela.
Admitir que “a cultura do crescimento económico é sedenta de testes padronizados e irrita-se com ensinamentos que não se prestam facilmente a este tipo de avaliação” ou que “a pressão do crescimento económico levou muitos dirigentes políticos a reorientarem todo o sistema universitário – o ensino e a investigação, em simultâneo – numa óptica de crescimento” é, de facto, constatar a transposição para o espaço académico de lógicas que amplificam o sentido utilitário e subordinado do seu contributo e papel social, onde aquelas valências de saber que pior respondem a este desiderato tendem a desaparecer ou, em todo o caso, a ocupar um papel secundário, se não residual. A pressão a que a organização académica está hoje sujeita, sob o ponto de vista da produtividade (quer esta se meça pela produção de artigos académicos, quer pela empregabilidade dos formados), não deixa de evidenciar, do lado da oferta educativa, o abandono crescente do jazz em favor da filarmónica.
E o paradoxo entre aquilo que parece solicitar-se às organizações humanas e aquilo que são “saberes nobres” é resultante de um persistente esforço para ocultar o político sob a capa hegemónica do económico, aparente ordem única e deliberativa das demais – a desvalorização do social a que hoje se assiste corresponde àquilo que George Bush descreveu, a propósito das mortes (involuntárias) de civis em cenário de guerra, como danos colaterais, neste caso da actividade económica.
Não estranhamente, e ainda citando Nussbaum, “os aspectos humanistas da ciência e das ciências sociais estão igualmente em retrocesso, preferindo os países o lucro de curto prazo, através de competências úteis e altamente aplicadas, adaptadas a esse objectivo”. Os saberes elitistas são hoje aqueles que melhor traduzem o imperativo da ordem económica – saberes quantificáveis, modelares, objectivos, exactos; em suma, saberes utilitários – e, se já se compreendeu o destino para que é remetido o social (mas igualmente as artes), dificilmente se indaga o alcance de sociedades que teimam em ocultar o político: “hoje, continuamos a afirmar que queremos a democracia e também a liberdade de expressão, o respeito pela diferença e a compreensão dos outros. Pronunciamo-nos a favor destes valores, mas não nos detemos a reflectir no que temos de fazer para os transmitir à geração seguinte e assegurar a sua sobrevivência”.
No artigo de Alexandra Prado Coelho, uma jovem universitária diz ter concluído que, “se a situação está como está, não vou tirar um curso de que não gosto para ficar na mesma. Vou estudar o que gosto e se depois tiver de ir para caixa de supermercado vou”. É uma outra perspectiva do que significa construir uma relação com o saber – com mais jazz ou mais música filarmónica, em liberdade e consciência, com certeza.

Henrique Vaz


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

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