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“Tenho uma aluna que gostaria que você conhecesse”

Perguntei sobre as coisas que sabia, mas foi do que não sabia que ela quis falar. Então me disse que a coisa que mais queria aprender era escrever seu nome, isso para ela era um “sonho”. Foi doloroso ouvir do outro ser sonho o que deveria ser dele um direito.

Este convite foi o suficiente para que eu me deslocasse ao seu encontro. Ao encontro de Maria. Este não é um nome fictício que uso aqui como pro fessora/pesquisadora – o que seria até compreensível em nossa cultura, uma vez que, de tão comum, já deixou em muitas situações de ser um substantivo próprio. Assim, Maria passa a representar muitas mulheres. Naturalizamos este nome que é dado à maioria das meninas e que em geral se dá em homenagem a uma referência religiosa, sacra. Um nome que é escolhido entre tantos outros não por acaso e que tem um sentido todo especial para quem o escolhe. Segundo a enciclopédia livre, o nome Maria significa “mulher que ocupa o primeiro lugar”; “nome da progenitora de Jesus, entre outras várias mulheres de grande valor santífico”. Se não pelo valor religioso, sonoro ou estético... Maria é um nome que ainda se faz muito presente na América Latina.
No entanto costumamos apelidar as pessoas volúveis de “Maria vai com as outras”. Banalizamos o próprio (no sentido do que é do outro), o singular e o individual, assim como desqualificamos, em nome de uma cultura hegemônica e eurocêntrica, esse outro nos seus diferentes modos de saber e de estar no mundo.
São tantas Marias... Reais e fictícias. Mas nenhuma é como a Maria de que falo, ou melhor, nenhuma é como a D. Maria de que falo. Essa é única e muito comum ao mesmo tempo. É única porque gosta de leite de cabra, dança forró, cozinha bem, adora comer angu, tem um sorriso franco, olhar sereno e é mulher de Francisco. E tão comum porque, como tantas, quer se apropriar de seu nome, fazer dele próprio através da escrita, pois aos seus 74 anos de idade ainda não domina sua grafia. Como tantas, D. Maria foi vítima das injustiças cognitivas, no sentido que traz Boaventura Santos. “Você vem?”, me pergunta a professora ao telefone. “Claro, nos encontraremos no lugar marcado”, respondo eu. E de lá partimos juntas a caminho da escola, que fica num lugar de difícil acesso.
Seguimos num ônibus escolar – único transporte disponível naquele dia – que parecia anunciar sua chegada a cada estalo, seus pneus pareciam tatuar fortes marcas no chão de terra batida desnivelado e esburacado.
Paramos no meio do caminho. O motorista abriu as portas e junto com a brisa fria da noite entrou D. Maria, com um sorriso no rosto e seu material de escola em seus braços, uma pasta com estampa dos personagens da Disney, um caderno, lápis e borracha. Olhou-me com curiosidade, perguntou quem eu era e me chamou de senhora. Isso me provocou e retruquei dizendo que não precisava me chamar dessa forma, mas ela disse:
“Precisa sim, porque a senhora é professora”. Pela primeira vez recebi a reverência pela profissão e não pela minha idade. Chegamos à escola e lá já estavam alguns dos nove alunos da EJA (Educação para Jovens e Adultos) que compunham a única turma a freqüentar o espaço naquele horário. Iam chegando aos poucos e, enquanto isso, eu e D. Maria começamos a conversar. Perguntei sobre as coisas que sabia, mas foi do que não sabia que ela quis falar. Então me disse que a coisa que mais queria aprender era escrever seu nome, isso para ela era um “sonho”. Foi doloroso ouvir do outro ser sonho o que deveria ser dele um direito. Então escrevi com letra caprichada, numa folha de seu caderno, seu nome, e ela prontamente perguntou se podia copiar – prática a qual estava acostumada a realizar, assim como tantas outras atividades de prontidão motora. Com muito esforço e dedicação desenhou cada letra. Parecia cansada e então interferi: “Quando estiver cansada, a senhora me fala pra gente continuar a conversa”. Ela sorriu e disse: “Posso escrever de novo?”. Eu assenti com a cabeça e ela continuou.
Ao terminar, descansou a mão no papel e suspirou. Então eu arrisquei: “A senhora cansou D. Maria? Está doendo a mão?”. E então ela fechou o punho, colocou no peito e me disse: “Tá doendo na mão, não; tá doendo aqui, no coração”. Esse foi nosso primeiro encontro. E esse encontro me deu muito que contar e pensar. Eu pensava que escrever doía, mas D. Maria me lembrou que não saber escrever pode ser ainda mais doloroso. O quanto sofre quem não sabe? Em busca dessas e outras respostas ainda vamos continuar nos encontrando, eu e D. Maria. Eu e muitas Marias.

Márcia F. Carneiro Lima


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

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