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Os professores de matemática precisam de estar conscientes do importantíssimo papel que desempenham na formação dos jovens

Quando falamos de Matemática, ela aparece quase inevitavelmente associada à ideia de insucesso escolar. Para tentar perceber até que ponto esta ideia corresponde à verdade, e quais os motivos que poderão estar na sua origem, colocámos algumas questões a Jaime Carvalho e Silva, um dos reconhecidos especialistas nesta área e colaborador regular da PÁGINA.
Professor associado do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Jaime Carvalho e Silva coordena o Projecto Softciências, de formação de professores e divulgação científica é o autor da página de divulgação NONIUS. 
Em 2005 venceu o prémio José Sebastião e Silva, pelo livro «Matemática 7», e no ano passado foi distinguido com o prémio “Seeds of Science”, na área de Ciências Exactas, pelo jornal «Ciência Hoje», de ciência, tecnologia e empreendedorismo.
Em Julho de 2008 tornou-se o primeiro português a ser eleito secretário-geral da Comissão Internacional para a Instrução da Matemática (ICMI), a maior associação internacional dedicada ao ensino da disciplina, que avalia a situação do ensino a nível mundial em áreas como a formação de professores, o uso das tecnologias ou a aplicação da matéria nas escolas.
A limitação de agenda imposta pela intensa actividade profissional de Jaime Carvalho e Silva, associada à sua ausência temporária do país, levou a que esta entrevista fosse possível apenas através de correio electrónico. Apesar deste constrangimento, oportunidade para conhecer a sua opinião sobre o Plano de Acção para a Matemática, as possíveis estratégias para a melhoria do ensino da disciplina nas escolas e a actuação dos responsáveis políticos nesta área, entre outros temas.

O insucesso escolar na área da Matemática é um problema que tem persistido ao longo dos anos, em Portugal. A situação mantém-se ou considera que houve alguma evolução?

O insucesso escolar é um problema tão antigo quanto a escola - no século XIX, por exemplo, os estudantes universitários pediam ao Governo para serem dispensados dos exames finais; e bastava o rei visitar o norte do país para isso acontecer. Mas temos de comparar também o panorama escolar geral e não apenas o insucesso. Há cada vez mais pessoas escolarizadas em Portugal e essa escolaridade é, tal como nos restantes países, cada vez mais avançada. Nesse sentido, podemos afirmar que evoluímos.
No entanto, lamentamo-nos sempre, justamente mas talvez quase em exclusividade, pelo facto de os resultados não serem melhores.
É contudo curioso que na comunicação social haja tanta indignação por os resultados a Matemática serem os piores de todas as disciplinas (questiono-me, nesse sentido, se fará sentido comparar classificações de diferentes disciplinas), quer a média seja de cinco valores (como era no tempo das antigas provas específicas de acesso ao ensino superior e no tempo em que os alunos podiam entrar na universidade com zero valores nessas provas específicas) quer seja como hoje acontece, em que a média nacional do exame nacional de Matemática chega a atingir valores positivos.

Em relação a outros países, como nos situaria?

A nível internacional temos de entender que o panorama não é nada fácil: há ainda 75 milhões de jovens que não conseguem sequer frequentar a escola, embora em Setembro de 2005 as Nações Unidas tenham definido nos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio que essas crianças deveriam ter acesso à escola. Não podemos ficar pelas lamentações, temos de ser positivos e tentar melhor continuamente, sabendo que antes de nós já outros o fizeram com resultados visíveis.

Que balanço faz da actuação dos sucessivos responsáveis educativos em relação a esta disciplina?

Quando nos comparamos com países mais avançados verificamos que poderíamos ter já um melhor desempenho, que poderíamos ser mais eficazes. Mas os responsáveis educativos encaram frequentemente as questões da escola de uma forma muito incompleta. Não procuram ter uma visão global desde o ensino pré-escolar e o primeiro ciclo ao ensino superior (e não apenas ao universitário), desde a formação inicial de professores à formação ao longo da vida, desde o apoio aos alunos com dificuldades até ao estímulo aos alunos mais interessados. Muitas vezes se ouve dizer que é preciso investir no nível X porque este é mais determinante no efeito Y. Assim nada funciona, porque o sistema educativo inclui tantas influências internas recíprocas que uma melhoria num lado é facilmente anulada pela degradação ou simples estagnação noutro lado.

Que novas estratégias defende? O PAM, por exemplo, contribuiu de alguma forma para atenuar o problema ou terá potencialidades ainda não totalmente exploradas?

O Plano de Acção para a Matemática representou, pela primeira vez em Portugal, uma acção concertada de intervenções em quase todos os níveis de ensino, baseadas nos múltiplos documentos de avaliação do sistema educativo português existentes à data, incluindo os relatórios do estudo internacional PISA. Mas infelizmente várias medidas nunca saíram do papel - a melhoria da formação inicial em Matemática dos professores do 1º ciclo, por exemplo, nunca avançou.
Por outro lado, os avanços trazidos pelo Plano são menorizados ou descontinuados por responsáveis apressados. E isto no ano em que se soube que o Plano teve influência determinante na melhoria dos resultados a Matemática. Um dos avanços que corre o risco de se perder é o do planeamento flexível do apoio em Matemática aos alunos nas escolas: umas escolas punham os professores a trabalhar em par pedagógico, outras aproveitavam horas de Estudo Acompanhado, outras desenvolviam projectos ligados à Matemática na Área de Projecto (em particular promovendo a interdisciplinaridade), outras ainda abriam clubes de Matemática ou salas de apoio à Matemática. Só in extremis foi preservado o Estudo Acompanhado, mas tudo o resto parece ignorado ou irá mesmo tornar-se impossível.
A melhoria do ensino da Matemática passa por não só por ter uma carga horária compatível com as exigências do programa oficial, mas também por ter formas diversificadas de apoio aos alunos, em particular fora da sala de aula.

Inspirado na experiência implementada em Inglaterra, sugeriu a criação de um cargo de conselheiro-chefe para a Matemática. Esta medida pode resultar em Portugal?

Totalmente. A incompreensão do papel da Matemática na sociedade actual e das dificuldades específicas do seu ensino (quando se fala de exames há sempre exame de Matemática e depois as disciplinas estão todas democraticamente ao mesmo nível), aconselham uma medida desse tipo. É preciso alguém que, ao mais alto nível, consiga interagir de modo a influenciar as decisões políticas e consiga conferir alguma coerência no sistema educativo, que raramente existe. E não parece haver interesse em conhecer realmente o que se passa com a Matemática.
Durante cerca de dez anos coordenei a elaboração dos programas de Matemática do Ensino Secundário e a definição do perfil dos exames desta disciplina. Ao longo desse período, nunca algum ministro da Educação esteve interessado em ouvir a minha opinião (e foram cinco), muito menos o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assembleia da República ou o Presidente da República. Um(a) Conselheiro(a) chefe para a Matemática teria por missão interagir com todos eles e nenhum poderia ignorar o desafio de ultrapassar as dificuldades numa área fulcral para a formação do cidadão de hoje e do futuro.

Apostar na melhoria da formação contínua de professores é outra das suas sugestões. Qual a melhor forma de a concretizar e de a enquadrar nas actuais condições?

A formação contínua de professores deveria ser algo de regular e natural no percurso de um professor. Os professores mais experientes deveriam ter como obrigação formar os mais novatos. Os que se especializam numa subárea deviam fazer passar esse conhecimento aos colegas. Infelizmente estamos nos antípodas dessa situação, em que se aceita com naturalidade que a formação contínua obrigatória seja substituída por uma simples declaração de oferta insuficiente de formação. Um professor que pára é um mau professor.

Já agora, por que faltam professores de Matemática em Portugal? E que consequências podem advir para o sistema educativo?

A resposta à primeira questão é simples: não se faz um planeamento minimamente capaz em Portugal! Não sei, e penso que ninguém sabe, se não haverá também falta de professores de Língua Portuguesa ou de línguas estrangeiras, por exemplo. Quando se fez algum esboço de planeamento, esse foi grosseiramente incompleto. Por exemplo, foram incluídos nas estatísticas todos os professores com habilitação própria, mas agora essa figura desapareceu - e bem - e não se refizeram os cálculos. Ao mesmo tempo, nem sequer há estatísticas actualizadas ou elas são incompletas.
A consequência vai ser tanto alunos sem aulas de Matemática durante dois ou três meses (e à beira de uma crise de nervos quando retomarem as aulas) como a pressão de recrutamento de professores em áreas excedentárias para colmatar a falta em Matemática. Já faltou mais para vermos os professores de Educação Visual e Tecnológica a dar Matemática. Infelizmente, numa área de tanto insucesso, acaba por se achar que qualquer um pode dar Matemática porque “no fundo é só aprender a fazer contas” !!!

E o que se pode fazer para contrariar a situação?

Para contrariar a situação seria necessário um investimento decisivo na formação inicial em Matemática (actualmente deverão estar a ser formados menos de cinquenta novos professores de Matemática por ano em todo o país) e na reconversão sustentada de profissionais de outras áreas. Nos anos 80 estive no Ministério da Educação a chefiar uma delegação da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), tendo na altura proposto um plano de formação/reconversão, coerente e de qualidade, de professores de matemática oriundos de áreas de ciências, tecnologias e economia, que permitiria, com pouco investimento, em dois ou três anos, repor o nível de professores necessário ao sistema. Fui olhado com condescendência e sobranceria. Depois disso já tivemos duas “crises” provocadas pela falta de professores de Matemática...

É reconhecida a preocupação e a atenção que tem dedicado à qualidade do ensino da Matemática, desde o Ensino Básico ao Superior. Que mensagem quer deixar a quem tem nas mãos a educação matemática das crianças e jovens portugueses?

Os tempos que correm não são fáceis, mas noutras épocas também já houve problemas graves e as pessoas conseguiram ultrapassá-los. Sozinhos pouco conseguiremos fazer. Trabalhando uns com os outros, nas escolas, nas associações (como a Associação Portuguesa de Matemática ou a SPM) poderemos fazer muita coisa. O ensino da Matemática é essencial na sociedade actual, pelo que os conhecimentos que os jovens possam adquirir são essenciais a uma vida de cidadão mais completa e mais proveitosa. Os professores de Matemática precisam de estar conscientes do importantíssimo papel que desempenham na formação dos jovens.
Num mundo cada vez mais matematizado, em que os erros saem frequentemente muito caros (veja-se o caso do célebre burlão americano Madoff que derreteu muitos milhões e declara repetidamente que ficou admirado pelo facto de a sua burla não ter sido descoberta mais cedo), um professor pode fazer a diferença. E se pensarmos nas estatísticas que dizem que "dois anos após terem terminado o ensino, mais de 40 por cento dos jovens com o básico ainda procuravam emprego e apenas 25 por cento dos licenciados permaneciam nessa situação" ou então que "Portugal é o segundo país, a seguir ao Brasil, onde o prémio salarial dos licenciados que entram no mercado de trabalho é mais elevado” ou ainda que “quem faz uma licenciatura ou um grau mais elevado ganha duas vezes mais do que a média", então a nossa consciência deve ser maior. A eficácia da escola é a chave da mudança social.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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