Página  >  Edições  >  Edição N.º 192, série II  >  Business as usual ou um ensaio de economia pura

Business as usual ou um ensaio de economia pura

Assistimos à emergência de um sector financeiro pujante como nunca na história (a economia de casino, como alguns a têm vindo a designar), que submerge toda a actividade económica clássica e que está na base da eclosão da crise actual. O que nos preocupa é esta tendência para a catástrofe que os partidos do designado ‘arco do poder’ têm vindo a demonstrar nas últimas décadas, dando a ideia de que se encontram num espaço onde nada de verdadeiramente importante se decide, assumindo a esfera financeira o núcleo efectivo da governação mundial.

O século XIX, que se iniciou com o ruir da ideia (e da possibilidade) de constituição do primeiro Império da Era Moderna, e apesar das profundas transformações societais que veio a testemunhar (fim das sociedades agrárias, emergência do sistema capitalista moderno e respectiva sociedade industrial; afirmação do ‘império da razão iluminista’, no qual a ciência e o progresso assumem papel estruturante, contribuindo para a ruptura com tradições seculares e a emergência de novas formas de vida e de pensamento sociais), alguma delas matizadas por tentativas revolucionárias de tomada do Estado e golpes de Estado (nomeadamente em França), é considerado por Eric Hobsbawm como o século da paz.
Karl Polanyi também utiliza esta expressão para designar aquele século, mas com a preocupação de identificar os factores que, nesse período de tempo, foram germinando no sentido de produzir os episódios de maior barbárie que a história foi chamada a testemunhar. Assim, há precisamente 100 anos, nos palcos onde, “segundo a lenda em vigor, o futuro se mostra em primeiro lugar” (Beck, 2002), vivia-se em plena belle époque, uma época (dizem-nos alguns autores, nomeadamente Beck, 2002 e John Gray) marcada por um “optimismo enorme” quanto ao futuro, quem poderia prognosticar que o século XX seria caracterizado pela barbárie, constituindo mesmo “um dos mais negros da história”?
De entre esses factores Polanyi salientou como mais relevante para o que viria a suceder a partir de 1914 aquilo que designou por laissez-faire ou mercado livre auto-regulável, uma invenção ideológica novecentista posterior e, quanto a nós, erradamente apresentada como uma tese smithiana sobre a economia e o seu funcionamento natural.
Ora, decorrido um século, as teses do mercado livre que alegadamente se auto-regula voltam a surgir de um modo hegemónico, tendo marcado as politicas públicas desde os anos 80. A crise que todos temos vindo a testemunhar nos últimos anos no mundo ocidental (e que está longe de estar ultrapassada, como nos querem fazer crer os nossos governantes e alguns dos seus apoiantes mais incondicionais, apesar dos discursos inflamados contra o neoliberalismo), constitui a expressão mais clara das opções assumidas pelo chamado Consenso de Washington, que se centrava na liberalização dos mercados e nas privatizações em massa. Para agravar este cenário, que passou a marcar as relações globais, assistimos à emergência de um factor completamente novo – um sector financeiro pujante como nunca na história (a economia de casino, como alguns a têm vindo a designar) que submerge toda a actividade económica clássica e que está na base da eclosão da crise actual (que diria Smith deste facto?).
Referindo-se a um outro contexto histórico, mas articulando-o com os sinais emergentes nos anos 90 (e que se encontram hoje bastante agravados), e depois de acentuar que a acção dos economistas ilustrados da época, armados com “as cartas dos mares do século XIX, em que obviamente já não se podia confiar” (onde é que já vimos este quadro?), só estavam a piorar a crise, Hobsbawm, refere o seguinte, que nos parece exemplar para a época em que vivemos: “Aqueles de nós que viveram os anos da Grande Depressão ainda acham quase impossível compreender como é que as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão completamente desacreditadas, vieram mais uma vez a presidir a um período global de depressão em fins dos anos 80 e 90, que, mais uma vez, foram igualmente incapazes de entender ou resolver”.
De acordo com Gray, “se fizermos da história o nosso guia, devemos esperar que o mercado livre global em breve pertença a um passado irrecuperável. Como outras utopias do século XX, o laissez-faire global será engolido pela memória da história – juntamente com as suas vítimas.”
O que nos preocupa é esta tendência para a catástrofe que os partidos do designado arco do poder têm vindo a demonstrar nas últimas décadas, dando a ideia de que se encontram num espaço onde nada de verdadeiramente importante se decide, assumindo a esfera financeira – que não é eleita nem presta contas no espaço público – o núcleo efectivo da governação mundial. E aqui a Europa tem de se definir: ou continua a navegar à vista sob a batuta dos chamados mercados financeiros (fingindo que governa) ou assume um projecto de governação que, de acordo com Samir Amin, ou “será de esquerda ou não será”.

Manuel António Silva


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo