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Avaliação de desempenho docente?! Mas não há nada para avaliar...

A professora estava calmamente a tirar fotocópias na reprografia. O colega entrou com alguns horários na mão – um deles, o dela. Logicamente, perguntou-lhe o que andava ele a fazer com o horário dela; e ele, que era para tentar encontrar um tempo comum para que pudessem reunir todos. “Para quê?”. E ele, timidamente: “Por causa da avaliação de desempenho. Como sou teu relator…”. “Ai sim?! Vou ser avaliada? Por ti?! Não sabia de nada!”. “Que sorte!”, pensou ele.
O professor saiu dali com um certo sorriso na música dos olhos: uma ministra às canelas, outra às costas; um primeiro-ministro sempre à perna; reuniões de trabalho no sindicato e na federação de sindicatos; manifestações no Porto e em Lisboa; dias inteiros em reuniões da Comissão Coordenadora de Avaliação; reuniões de Pedagógico, de Departamento e de Relatores do Departamento. E aquela santa... Oh, abençoada! Livre de tudo, lá no meio da sua formiguice ou da sua cigarrice. Foi então que ele começou a desconfiar que este processo de avaliação do desempenho talvez não subsistisse, talvez não pudesse permanecer, talvez não passasse de mais uma fantasia neoliberal.
Recordou, então, como, vinte anos antes, ele próprio defendera a necessidade de as escolas procederem, autonomamente, a essa mesma avaliação do desempenho docente; da urgência em não se permitir que um ou outro docente, por falta de profissionalismo, ou por qualquer outra incompetência, pudesse pôr em causa o futuro de centenas de jovens, a identidade profissional docente e a imagem da Escola Pública. E até, eventualmente, a necessidade de reconhecer o mérito excepcional de um ou outra. Então, considerava-se imprescindível um trabalho colectivo nas escolas, alicerçado numa gestão totalmente colegial a que – e muito bem – se tem chamado democrática. Esta concepção do colectivo era a trave mestra de todos os valores sociais vigentes para a educação, onde toda a futura sociedade portuguesa deveria sentir-se implicada. E era nesse espaço que a avaliação do desempenho docente fazia sentido: como criação, como construção; no colectivo.
Desenrolou ainda mais o papiro das memórias. Avaliação das escolas já havia: totalmente ou quase toda externa, levada a cabo pela Inspecção, respectivamente restrita à análise de documentos ou pela sua associação a entrevistas a docentes e outros. Bem, mal, ou mais ou menos, não sem erros ou com poucas evidências, lá se foram classificando escolas e agrupamentos. Para consumo interno, para melhoramento de determinadas lacunas. Não deixaram de ser pontos de vista pretensamente objectivos; mas, sendo o que eram e tendo o valor que tinham, era-lhes eticamente consentida alguma subjectividade. Coisa que, neste momento, com a subordinação à definição de quotas, é bastante complicada.
Lembrou-se, também, que coordenava uma equipa de avaliação interna, na escola. Não propriamente de auto-avaliação – com toda a dinâmica que isso implicaria na permanente actualização, como processo e não como produto, assim como no caminho emancipador do conjunto dos actores; mas era de reflexão, implicava pontualmente os outros docentes nos departamentos e noutras estruturas, analisava, concluía, propunha alternativas e serviria um pouco para que cada docente e cada conjunto de docentes, ou mesmo todos, encetassem novos caminhos, usassem a avaliação como vector de mudança, perspectivassem novos caminhos.
Foi então que o professor voltou à imagem da fantasia neoliberal. Um capricho sem eira nem beira, que ninguém sabe onde vai cair: directrizes para um biénio devidamente calendarizadas, implicando reuniões de vários órgãos, de avaliadores e de avaliados; relatórios com regras e padrões obrigatórios; dossiers digitais; entrevistas, comunicações por escrito, reclamações, interposições, recursos; métodos, instrumentos de registo e fontes, observação de aulas com grelhas classificatórias; evidências para comprovar o quotidiano que toda a comunidade conhece, que o departamento e outras estruturas intermédias conhecem ainda melhor e sem quaisquer subjectividades. Que haverá de novo para avaliar? Nada! Só o que sempre houve e haverá.
Perante esta grande loucura em que se transforma a avaliação – tão necessária às escolas – num processo eminentemente classificatório de professores, não só por questões económicas (como se diz e desculpa ultimamente), mas essencialmente por questões políticas que têm a ver com a forma como estamos na vida (a qual para alguns se reveste sempre, fatalmente, de uma feição persecutória dos seus companheiros), o professor concluiu que afinal se trata de um processo totalmente incongruente. Porque adopta todos os preceitos de uma avaliação externa e os aplica totalmente – numa vertente perversa que põe colegas contra colegas nas mais anómalas situações – num processo alegadamente científico que é interno e que, para ser real, o mais objectivo possível e com consequências positivas, não pode estar sujeito a contradições de base, nem pretender ser chacinador, nem pôr em causa o equilíbrio democrático das escolas e das comunidades educativas.
E sentiu que se acresce ao trabalho docente uma outra tarefa, como se não tivessem já bastantes: garantir a sua própria harmonia e a estabilidade das escolas (que sendo do Estado são de todos nós), inventando, como sempre, formas de fugir ao maquiavelismo e ao anacronismo forjado por não se sabe quem e de perpetuar a justiça numa sociedade democrática e livre. O que também faz parte do acto de educar.
À professora, não voltou a vê-la. Mas espera, para além das reuniões já agendadas, encontrá-la também nas inúmeras manifestações que se avizinham. Pela Escola Pública, pela democracia, pela pátria, mas, sobretudo, para já, por um novo tempo que traga mais de si mesmo.

José Rafael Tormenta


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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