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O visitante de Saturno

Estes terráqueos são loucos! Uns mais, outros menos, é claro, mas sensatez é algo que parece não abundar neste mundo interior do sistema! Há alguns anos saturninos que me venho debruçando sobre esta espécie indígena do terceiro planeta e, ainda hoje, muitos dos seus comportamentos constituem para mim um completo e absoluto mistério. Raramente dizem o que pensam e, muitas vezes, nem sequer pensam o que dizem! É vê-los, impassíveis, cogitar uma coisa, dizer uma outra e fazer quase sempre uma terceira – algumas vezes, por incrível que pareça, literalmente contrária!
Por exemplo, no desporto mais popular, “o futebol”, a atitude típica de “despedimento” de um “treinador” parece exigir previamente, e por mais absurdo que seja, um reafirmar público da solidez do seu contrato e um firme desmentido da eventualidade, mesmo que remota, de uma rotura. Por outro lado, “dar os parabéns ao árbitro” pelo seu inexcedível desempenho parece querer dizer, pura e simplesmente, que ele foi particularmente desonesto! Esta lógica alienígena, de facto, é de loucos!
Nos últimos tempos tenho dirigido a minha atenção para uma pequena e peculiar nação localizada no extremo ocidental do grande continente a que os terráqueos chamam “Euro-Ásia”. A análise das suas emissões electromagnéticas (aqui designadas por T.V.) revela os mais excêntricos comportamentos e mostra que, à semelhança de todos os outros, também estes humanos são dotados de uma moral algo tortuosa e de uma ética pouco menos que inacessível às espécies galácticas mais evoluídas.
Aí, os rituais de acasalamento constituem uma verdadeira obsessão! Uma observação, mesmo que superficial, mostra-nos cobaias impiedosamente encarceradas, “acorrentadas” e expostas publicamente através dos tais sistemas difusores electromagnéticos! Ao que parece, tais indignidades (em que até a mais simples privacidade é negada) destinam-se a estudar as formas sexuais e de sedução em situações limite, analisar as tensões sociais que se desenvolvem na permanência em espaços fechados e avaliar os níveis de agressividade daí decorrentes.
Parece que dantes usavam “ratos” (pequenos mamíferos roedores, pelos vistos pouco estimados). Ainda não é perfeitamente claro por que passaram a utilizar pessoas... Mesmo a utilização de animais inferiores neste tipo de experiências é, como se sabe, uma problemática candente um pouco por toda a galáxia. Agora, utilizar animais sapientes – pelo menos pretensamente sapientes – e, ainda por cima, da mesma espécie... Eis um costume capaz de chocar o mais volúvel dos sirianos!!
Mas este tipo de absurdos perpassa toda a sua vivência. Queimam folhas secas de uma planta a que chamam “tabaco”, ingerindo o fumo de que são muito gulosos. Mas enquanto o consumo desta substância é perfeitamente legal e até prestigiado (à semelhança de outras como o “álcool” ou a “cafeína”), algumas, de natureza idêntica e gravidade semelhante, como a “marijuana” e o “haxixe”, são terminantemente proibidas e os seus consumidores (tão viciados como os outros, assinale-se) estigmatizados e marginalizados! Há aqui, com certeza, qualquer coisa que me escapa!
Um aspecto particularmente curioso respeita ao comportamento dos líderes e dirigentes, que na linguagem indígena se chamam “políticos”. São personagens assaz peculiares, que falam profusamente “do povo”, “prò povo” e “pelo povo”, mas, curiosamente, não parecem apreciar especialmente a sua presença! Apregoam aos quatro ventos serem apenas motivados por inexcedível espírito de “missão” e de “sacrifício pelo bem público”, mas, paradoxalmente, parecem resistir a todos e mais alguns esforços desenvolvidos para os aliviar de tão penoso fardo!
Tendem a agrupar-se em estruturas associativas denominadas “partidos”, supostamente  constituídos por “políticos” com ideias e ideais semelhantes.  Tais semelhanças não são, porém, muito perceptíveis para um observador externo. Na verdade, a competitividade herdada do seu passado “primata e predador” é permanente e, muitas vezes, adquire até contornos violentos, principalmente quando estão em disputa determinados lugares que, por razões obscuras, se denominam “tachos”. Incongruência das incongruências, tudo isto acontece enquanto estes e outros dirigentes do mesmo grupo vão proferindo publicamente discursos atrás de discursos, salientando a invulgar coesão interna e a inexcedível solidariedade partidária!!
Por Zarkan! É sabido que a exobiologia é a ciência do surpreendente! Mas, uma dúvida me assalta e condiciona todo a minha análise: como é que uma espécie que cultiva assim a irracionalidade conseguiu, sequer, sobreviver?! O sistema governativo, por exemplo, assenta naquilo a que chamam “democracia”: uma espécie de populismo controlado que lembra o nosso período pré-zarkiano. É suposto que, nesse contexto, quanto maior for a participação popular (tanto eleitoral como de acompanhamento das decisões tomadas), mais forte e saudável é o “sistema democrático”.
Apesar disso, os discursos políticos são pura e simplesmente incompreensíveis para a larga maioria da população, e ninguém parece preocupado com isso! Mais ainda, alguns são até incompreensíveis em absoluto, isto é, não só não dizem nada, como não pretendem dizer seja o que for... Parecem funcionar, apenas, como uma espécie de soporíferos; fórmulas estereotipadas destinadas a sugestionar pela forma e a cativar audiências. São assim como mecanismos de verbalização hipnótica, que estes hominídeos (vá lá saber-se porquê) parecem apreciar particularmente.
E eu que podia estar confortavelmente estudando os “homens-lagartos” de Procrion ou os “vampiros energéticos” de Belteugese... Quem me mandou optar pelos esquisitóides dos terráqueos? Recentemente, após toda a classe política ter feito profissão de fé na necessidade urgente de combater a corrupção entre os “portugueses” (nome que estes alienígenas dão a si próprios), tanto na vida pública como política, o Governo acaba de aprovar uma lei para os “municípios” (espécie de governos locais), que, na prática, anula literalmente as regras que impediam a corrupção total nas obras municipais!
E dizer que esta é a espécie dominante no planeta!... Aliás, penso mesmo que estes espantosos dados irão relançar a velha questão filosófica de saber se as espécies planetariamente dominantes terão de ser sempre, e forçosamente, espécies sapientes!

Aurélio Lopes

Escola Superior de Educação de Santarém


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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