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Arzila, luz e arte

Dois pretextos para uma viagem a Arzila, no litoral atlântico de Marrocos: a herança arquitectónica portuguesa e o festival de artes que ali tem lugar nas duas primeiras semanas de Agosto. Outras razões a considerar são a hospitalidade da gente local e a belíssima luz atlântica.

Os sinais da presença portuguesa estendem-se pelo litoral marroquino, desde Ceuta, na face mediterrânica, até Santa Cruz do Cabo de Guer, perto de Agadir – por essas bandas sendo já escassos, uma ruína aqui e outra acolá. Essaouira, o último porto com relevância histórica e arquitectónica, conserva muralhas setecentistas, mas de assinatura francesa. O que havia de arquitectura militar lusitana na velha Mogador foi levado por águas e ventos. Por tais razões – e outras que são de inerente mérito –, Arzila, El Jadida e Ceuta são meritórias da atenção do viajante, embora em desiguais fatias.
El Jadida (a antiga Mazagão) conserva um recinto classificado pela UNESCO há meia dúzia de anos – a “cité portugaise” – e fica uma centena de quilómetros a sul de Casablanca, uma viagem mais longa, portanto; Ceuta, à excepção das muralhas, é em termos arquitectónicos e de ambiência urbana uma cidade europeia.
São estas razões arbitrárias, bem entendido, amassadas em função de critérios contingentes. As que aqui escoram a sugestão da viagem a Arzila são, acrescente-se, mais do que aquelas que foram enumeradas no começo da prosa: Arzila está ao alcance de um dia de viagem e o ambiente urbano da cidadela é o de uma cidade bem marroquina (se isto significa alguma coisa), o de uma das mais belas medinas do país vizinho. A velha Zilis, fundada pelos navegadores fenícios por volta de 1500 a.C., talvez seja, entre todas as mencionadas, a que melhor combina diferentes interesses e motivações. E é, com o seu clima marítimo temperado, um destino para todo o ano: no final do Outono, ou mesmo no Inverno, pode ser um refúgio para esquecer frenesis e agitações europeias.

Cidade branca

Para a presença portuguesa no norte de África – que começou com a conquista de Ceuta, em 1415 – o domínio de Arzila foi decisivo, sobretudo para o controlo da costa atlântica do Magreb. É, aliás, na sequência da tomada de Arzila por D. Afonso V, em 1471, que Tânger cai sob domínio português.
Arzila não fica longe de Alcácer-Quibir, que, como se sabe, ficou símbolo de vários desenvolvimentos históricos. O desenlace da Batalha dos Três Reis (como o acontecimento é conhecido na historiografia marroquina) evidencia as limitações da ocupação portuguesa, tão eloquentemente traduzidas numa observação de Oliveira Martins: “Ficávamos nas praças de Marrocos como a bordo das nossas naus; porém, as naus iam, vinham livremente pelos mares (...), ao passo que as praças de África eram pontões imóveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa...”. A vista de Arzila do lado do mar, com o casario alvo da cidadela abraçado pela cintura de muralhas portuguesas, lê-se como uma imagem que remete instantaneamente para o desenho de Oliveira Martins.
Se nos quarteirões mais recentes – e especialmente na zona do souk– a animação é constante ao longo do dia e, mesmo, noite dentro, no interior das muralhas, a cidadela respira serenidade, sem trânsito automóvel, as ruelas estreitas convidando a andanças pelo pequeno labirinto cheio de uma imensidão de revelações arquitectónicas. Um dos aspectos que mais impressiona o andarilho é, tendo em conta a estreiteza de ruas e becos, a espantosa luminosidade da cidadela – um efeito do casamento entre o omnipresente branco do casario e a luz atlântica. As descobertas são sem fim: janelas e janelinhas, de variados feitios e tamanhos, umas de reixa e outras em ferro forjado, postigos, portas e medievos portais ornados de cravos. Muitas casas acolhem lojas de artesanato e galerias de arte.
A cintura de muralhas que envolve a cidadela testemunha uma das melhores realizações da arquitectura militar portuguesa em África, com autoria do arquitecto Diogo de Boytac. O mestre de outras fortalezas portuguesas em Marrocos deixou também o traço na El Hamra, a torre de menagem onde se supõe que D. Sebastião terá pernoitado antes do desastre de Alcácer-Quibir. A fortaleza é uma das que se encontram melhor conservadas em todo o mundo. Duas das portas mais importantes dão para a avenida Hassan II, artéria que contorna a muralha oriental, e uma dessas portas, a Bab Homar, conserva as armas de D. Manuel I.

Arte contra a indignidade

Da passagem dos portugueses pela região ficaram esses e outros sinais. Mas que não se faça a viagem por mor, apenas, de tais curiosidades. Arzila é Arzila por outras e tão ou mais importantes razões. É uma das mais belas cidades de Marrocos, sem dúvida, e com uma atmosfera ímpar de urbe costeira, não demasiado turística, com temperos algo “campestres” em certos bairros dos arrabaldes. E, já se disse, com uma gente inflexível no acolhimento generoso e cosmopolita.
Arzila é Arzila, por exemplo, pelo festival de artes, que vai agora na sua 32ª edição. Começou em 1978, com o convite feito a onze artistas marroquinos para ilustrarem as paredes brancas com arte mural. Ninguém terá levado a coisa a sério, mas o festival nasceu dessa iniciativa e arrastou consigo a recuperação da cidadela, a criação de um Palácio das Artes, que é hoje a sede do acontecimento. Foi, sobretudo, um “investimento produtivo” (como agora se diz) no restauro da dignidade dos habitantes, que para isso, para esses restauros, é que devem interessar, em derradeira análise, as políticas e os tais investimentos. Nos anos 70, Arzila era um povoado esquecido e decadente, sem electricidade e telefones, escassa água potável, esgotos e lixo a céu aberto.
Os murais do festival estão por toda a parte e por lá ficam durante o ano inteiro, sempre até à edição seguinte do certame. Se os murais são uma das imagens que mais amiúde se retém da cidade, não são a única manifestação que o festival promove. O acontecimento congrega diferentes expressões artísticas – pintura, cerâmica, gravura, escultura, cinema, literatura e música. E há sempre workshops e ateliers que reúnem artistas e activistas das quatro partidas do mundo, com as suas artes e causas.
Criado com o objectivo de promover o diálogo entre culturas, afirmando o espírito cosmopolita e universalista de Arzila (que se orgulha da sua tripla herança: árabe, portuguesa e espanhola), o festival tem outra bandeira, a da “contribuição da arte para o desenvolvimento”. Numa expressão de realismo, mas sem abdicação da dimensão utópica, Mohammed Benaïssa, antigo ministro dos negócios estrangeiros de Marrocos e um dos fundadores do certame, arrisca: “With art you cannot end poverty, but you can bring about the end of misery”.

Humberto Lopes


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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